sexta-feira, janeiro 22, 2016

O génio de "Anomalisa" (1/2)

Um grande filme de animação? Sem dúvida. Ou mais simplesmente: Anomalisa é um grande filme — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Janeiro), com o título 'Um filme de animação sem fadas nem monstros'.

É relativamente simples resumir o ponto de partida de um filme como Anomalisa. Tudo acontece em torno de Michael Stone, especialista em “auto-ajuda” que está em Cincinatti para uma conferência sobre o seu novo livro; cansado com as suas próprias rotinas, marca encontro com Bella, uma antiga namorada, mas a conversa corre muito mal — até que Stone depara com Lisa, uma figura de aparência frágil que está em Cincinatti para assistir à sua apresentação...
Charlie Kaufman
História das ilusões e desilusões da idade adulta? Fábula sobre as enigmáticas diferenças entre o movimento amoroso e a pulsão sexual? Crónica sobre um mundo sustentado por uma teia de “comunicações”, “partilhas” e “ajudas”, mas em que, de facto, as pessoas se sentem cada vez mais sós? Um pouco de tudo isso, sem dúvida. Apetece até lembrar que conhecemos muitos filmes construídos a partir do mesmo misto de esperança e angústia. Resta saber se alguma vez vimos tais temas e situações tratados em... cinema de animação.
É verdade: realizado por Charlie Kaufman e Duke Johnson, Anomalisa foi fabricado com bonequinhos e outros objectos manipulados imagem a imagem (“stop motion”). No entanto, ao contrário da tradição do género, não aborda mundos mais ou menos alternativos e fantasistas, com fadas e monstros, propondo antes uma história dos nossos dias, com temas e personagens adultas. A sua presença na lista de nomeados para o Oscar de melhor longa-metragem de animação não pode deixar de envolver uma desconcertante ironia: por um lado, foi feito com o mesmo tipo de técnica de A Ovelha Choné, produzido pelos estúdios britânicos Aardman; por outro lado, a sua discreta carreira comercial nas salas dos EUA coloca-o num campeonato muito diferente do favorito Divertida-Mente, o mais recente sucesso da Pixar com distribuição dos estúdios Disney.
Ainda assim, na história recente da animação cinematográfica, Anomalisa não pode ser considerado um objecto isolado. Além do mais, convém não esquecer que a técnica que utiliza é conhecida desde os tempos heróicos do cinema mudo. Uma das primeiras grandes aventuras do sonoro, King Kong (1933), de Merian C. Cooper e Ernest B. Shoedsack, utilizava os seus recursos, mais tarde especialmente importantes nas aventuras concebidas pelo mestre dos efeitos visuais Ray Harryhausen (1920-2013), em títulos como A 7ª Viagem de Sinbad (1958), Os Argonautas (1963) ou O Vale dos Monstros (1969). Figura nuclear neste processo tem sido Tim Burton, como realizador e produtor, através de experiências em que o macabro não exclui o poético, como O Estranho Mundo de Jack (1993), A Noiva Cadáver (2005) ou Frankenweenie (2012).
De facto, a história moderna da animação não pode ser condensada na ideia segundo a qual se passou “apenas” do desenho tradicional para as técnicas digitais, geridas por computadores cada vez mais sofisticados. Claro que tal passagem é fundamental. Basta lembrar o impacto de A Pequena Sereia (1989), dos estúdios Disney, relançando a animação tradicional, e depois a revolução iniciada com Toy Story (1995), da Pixar, primeira longa-metragem totalmente fabricada por computador.
O certo é que temos assistido a uma coexistência de opções técnicas e criativas em que, curiosamente, os valores da animação tradicional não desapareceram. Por exemplo, o mestre japonês Hayao Miyazaki, embora pontualmente integrando algum tratamento computorizado, é um dos que se manteve fiel ao classicismo da aguarela em títulos tão célebres como A Princesa Mononoke (1997) ou A Viagem de Chihiro (2001). E há ainda o caso de Robert Zemeckis que, na fábula natalícia Polar Express (2004) e no épico Beowulf (2007), explorou o chamado “motion capture”, em que os desenhos animados são concebidos a partir do registo prévio da interpretação dos actores.
Este método terá tido a sua concretização mais ambiciosa, porventura também sofisticada, em As Aventuras de Tintin (2011), uma produção de Steven Spielberg e Peter Jackson, com realização do primeiro, mas os fracos resultados de bilheteira acabaram por comprometer o projecto inicial de uma trilogia.
Uma coisa é certa: mais do que um mero veículo para histórias infantis, mais ou menos ligadas à tradição das fábulas, a animação afirma-se hoje, tanto no plano industrial como artístico, como um domínio de produção capaz de tocar os públicos mais variados. No caso de Anomalisa, a dupla de realizadores quis, desde o princípio, garantir que as singularidades do projecto não seriam anuladas por qualquer formatação imposta por um estúdio de Hollywood. Assim, o financiamento do filme foi iniciado através do Kickstarter, plataforma online para angariação de fundos (“crowdfunding”); depois, o projecto foi consolidado pelo produtor Dino Stamatopoulos que, em última instância, conseguiu que um grande estúdio (Paramount) se interessasse pela sua distribuição. Anomalisa já ganhou o Grande Prémio do Júri de Veneza e, na noite de 28 de Fevereiro, vai ser o objecto mais insólito entre os nomeados para os Oscars.