quinta-feira, dezembro 03, 2015

"Ver ou não ver" O Leão da Estrela...

ADEUS À LINGUAGEM, de Jean-Luc Godard
De que falamos quando falamos do cinema que se vê ou não vê?... — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Novembro), com o título 'Fazer surf e pensar o cinema'.

Há dias, uma publicação online solicitou-me um depoimento sobre as razões para “ver ou não ver” o filme O Leão da Estrela, de Leonel Vieira. Tendo explicado que não estava disponível para reproduzir opiniões já expressas através das rotinas do meu trabalho, o assunto ficou por aí. Cordialmente, acrescento, sem problemas.
A simples existência de tal perspectiva do trabalho do crítico — como aquele que faz lei sobre o “ver ou não ver” — excede (e muito!) a publicação em causa. A sua infinita repetição favorece mesmo, há muitas décadas, a grosseira crispação do espaço de pensamento sobre o cinema em Portugal.
Por que é que o mesmo empenho não se manifesta a pretexto de outros filmes portugueses? Não vi nenhuma publicação do mesmo teor, dessas em que se trata O Leão da Estrela com a mesma indecifrável alegria com que se celebra a abertura de um novo restaurante de sushi, empenhada em perguntar se valia a pena “ver ou não ver” o filme Montanha, de João Salaviza, ou a trilogia As Mil e uma Noites, de Miguel Gomes. Também não creio que Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard, um dos objectos mais revolucionários do século XXI, tenha recebido a mesma atenção com que foi tratado o mapa do surf em Portugal. Porquê?
Perpassa por tudo isto uma visão pueril da actividade crítica, cinematográfica e não só, envolvendo uma militante menorização de qualquer vontade de pensar. Os críticos seriam esses monstros predadores que “querem” que as salas estejam cheias apenas com os filmes de que “gostam”... A pergunta muito básica que se repete é esta: mesmo em nome dos mais legítimos interesses de mercado, porque é que, de forma latente ou explícita, os críticos são definidos como um rebanho de gente estúpida, a mascar teorias da conspiração no fundo de uma caverna pré-histórica?
Sejamos claros: com os seus 32.498 espectadores, os três filmes que constituem As Mil e uma Noites conseguiram uma performance comercial apenas mediana para os padrões do nosso mercado. Para nossa maior desgraça, tal é suficiente para motivar os discursos demagógicos que gostam de proclamar que “ninguém” quis ver o filme porque... a crítica “gostou” (omitindo até que, como acontece com quase todas as estreias, de todas as origens, o filme suscitou leituras críticas bem contrastadas).
Acontece que a questão se enreda, precisamente, na futilidade de um jornalismo que reduz qualquer abordagem do cinema à ideia (?) segundo a qual o pensamento crítico e as folhas Excel das bilheteiras são coisas semelhantes, explicáveis uma pela outra... Santa ignorância. E as perguntas que importa colocar sobre o império da telenovela, as diferenças promocionais dos filmes e a (des)educação social para o cinema? Como é que esse jornalismo abordou o desejo de reflexão sobre o nosso presente português, inerente ao projecto de As Mil e uma Noites? Resposta: não abordou. Estava ocupado com o sushi e o surf.