sexta-feira, novembro 20, 2015

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David Bowie, Blackstar


N. G.: Menos de dois anos sobre o lançamento do álbum The Next Day e um após a apresentação do single Sue (Or in a Season of Crime), a chegada de Blackstar deixa por um lado evidente que, após os dez anos de hiato, David Bowie retomou o seu ritmo habitual de trabalho. E mesmo sendo pouco provável que algum dia volte a fazer digressões, a ideia de que pode criar novos discos (como o que apresenta em janeiro) ou mesmo outros projetos (como o musical Lazarus, que está aí a chegar), devolveram-no a rotinas que garantem assim novas pistas a uma das mais ricas, versáteis e influentes obras da história do universo pop (e arredores). Blackstar (que se anuncia com o símbolo de uma estrela negra de cinco pontas) traz contudo um elemento novo a todo este jogo de acontecimentos. Ou, melhor, retoma uma ideia que lhe garantiu vários episódios de ousadia, surpresa e visão: a reinvenção.

The Next Day, editado em inícios de 2013, era um soberbo manifesto de escrita de canções de fôlego rock’n’roll – plenas de alusões a etapas anteriores e ricas em autorreferenciação. A surpresa, nesse reencontro após dez anos de silêncio, fez-se pelo regresso em si. E pelo tom inesperado como aconteceu, o que não nos impede de reconhecer ali o seu melhor disco centrado no trabalho das guitarras desde os dias de Scary Monsters (1980) e de ter, em canções como Where Are We Now? ou The Stars are Out Tonight dois clássicos a inscrever na lista dos grandes momentos da sua obra. Há um ano Sue (or in a Season of Crime) desviava o foco da criação para terrenos mais próximos do jazz. Ao chamar músicos da orquestra de Maria Schneider e ao tomar o saxofone (na verdade o instrumento primordial de Bowie) como novas peças a explorar, transgrediu a forma mais classicista da canção pop/rock e lançou pistas num tema que serviu para mostrar que a história então evocada numa nova antologia não vivia apenas do passado. Mas ficava a dúvida. Era esta nova canção uma mera experiência pontual ou, antes, uma ponte para qualquer nova realidade? Agora, um ano depois, sabemos que esta última hipótese estava certa.

Tal como o que ficara sugerido nos primeiros teasers e trailer do teledisco, Blackstar volta ostensivamente as costas às experiências do disco anterior. Não é de todo uma novidade em Bowie, bastando confrontar Scary Monsters com Let’s Dance. Ou Earthling com hours… Isto para nem mergulhar nos anos 70, onde a novidade acontecia de forma ainda mais intensa.

Os sintetizadores lançam os fundos, a voz navega quase como que flutuando sobre os ambientes (e aqui podemos falar de familiaridade com caminhos recentes da obra de Scott Walker), os fundos rítmicos herdam ecos das experiências de meados dos noventas, porém sem aquela necessidade em seguir as pistas do presente drum’n’bass como se escutou em Earthling (que o tempo acabaria por reconhecer como um disco datado). Tensa e assombrada, a canção vai evoluindo, abre caminho a outras partes, desenha a meio um momento de classicismo que quase nos faz recuar a ecos de inícios dos setentas, retomando depois o tema de abertura e resolvendo, dez minutos depois, a canção com um sentido de arrumação que denota uma peça bem estruturada. Os músicos de jazz (os mesmos que colaboraram em Sue, estão de volta, pontuando instantes e ajudando a desenhar o cenário. Mas desta vez há uma outra ordem na condução das partes e formas da canção. Sem repetir os caminhos e sonoridades de Station to Station, mas com alguma familiaridade com o modo como, ali, Bowie tinha já mostrado uma capacidade para criar uma peça vocal mais elaborada, extensa e cénica e tematicamente intensa.

É cedo ainda para falar do álbum. Que, é sabido, chega a 8 de dezembro. Mas David Bowie dá-nos aqui não só a canção mais arrepiante que escutámos este ano. Como se mostra uma vez mais capaz de responder, em pleno, à velha máxima dos Monty Python, quando nos anunciam que aí vem algo completamente diferente. E assim foi!


J. L.: Blackstar vai, por certo, suscitar as mais diversas leituras "metafóricas", quanto mais não seja porque David Bowie, bem o sabemos, é um criador do novo a partir da reescrita de si próprio — há quem sugira, por exemplo, que o verso "Something happened on the day he died" remete para "Major Tom", a personagem do astronauta que circula por Space Oddity, Ashes to Ashes e Hallo Spaceboy.
Em qualquer caso, registe-se o prodigioso trabalho figurativo do teledisco realizado por Johan Renck (acrescentando na sua videografia uma obra-prima a outra, chamada Nothing Really Matters, para Madonna, em 1999). Preservando a pluralidade de sentidos que Bowie convoca, de algum modo duplicando a estrutura fragmentária (não fragmentada...) da canção, Renck arquitecta uma teia de paisagens contíguas em que a ironia do "livrinho vermelho" do maoísmo (de cor nada berrante, hélas!) se combina com ambiências de uma parábola rural (?) em que os espantalhos são corpos vivos de um estilizado filme de terror.
Dito de outro modo: não se trata de "ilustrar" a canção, antes de a assumir como etapa de um processo em que o jogo de imagens constitui, por assim dizer, a continuação da música por outros meios — como se prova, há quem faça política (visual e simbólica) sem se submeter às angústias de maiorias e minorias, apenas mantendo-se fiel aos valores da sua própria irredutibilidade. How many people lie instead of talking tall?