segunda-feira, novembro 16, 2015

Quando a criança era uma criança

Em Tudo Vai Ficar Bem, Wim Wenders volta a percorrer temas e lugares da infância — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Novembro).

No começo de Tudo Vai Ficar Bem, de Wim Wenders, quando conhecemos a personagem de James Franco, ele é “apenas” uma variante sobre um modelo tradicional: o escritor que se confronta com a angústia da página em branco. O seu envolvimento num acidente que vitima uma criança vai colocar uma dupla questão: primeiro, trata-se de saber como fazer o luto de tão trágica ocorrência; segundo, pergunta-se (ele pergunta e o filme pergunta) se existe legitimidade para transformar tal experiência em matéria de ficção.
Digamo-lo sem ambiguidade: o filme de Wenders é um objecto admiravelmente fora de moda (e, não tenhamos ilusões, em tempos de campanhas agressivas dos modelos mais poderosos do entertainment será publicamente penalizado por isso). Não se trata de empurrar o espectador para um qualquer maniqueísmo moral capaz de gerar um saldo de “bons” e “maus”, à maneira de muitos debates televisivos. Nem se pretende reduzir a teia de afectos e silêncios que, apesar de tudo, vai ligar as personagens a um qualquer discurso de “auto-ajuda”.
Perante a nitidez insondável da morte, aquilo que Tudo Vai Ficar Bem coloca em cena é a hipótese de continuar a viver — não apesar da morte, mas com a sua verdade indizível inscrita no dia a dia. O retorno do tema da infância está, assim, para além de qualquer sociologia de bolso sobre “infância” e “idade adulta”. Reencontramos a poesia radical que Wenders encenou em As Asas do Desejo (1987), condensada nas admiráveis palavras escritas por Peter Handke: “Quando a criança era uma criança, caminhava balançando os braços. Queria que o fio de água fosse um rio, o rio uma corrente, e que esta poça de água fosse o mar. Quando a criança era uma criança, não sabia que era uma criança. Tudo estava cheio de vida, e a vida toda era uma só.”