Rever Cleópatra, de Joseph L. Mankiewicz, num ecrã de televisão? Porque não?... Resta saber que memórias ainda cultivamos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Novembro), com o título 'O cinema em tom clássico'.
Reencontro o clássico Cleópatra (1963) num canal de cinema (TVCine) e não posso deixar de pensar que, nem que seja por cruel ironia, este será um filme para sempre assombrado.
Joseph L. Mankiewicz (1909-1993) ficou de tal modo marcado pelas atribulações que rodearam a respectiva produção — incluindo a agitação mediática em torno do par Elizabeth Taylor/Richard Burton — que se recusava a falar publicamente do filme. O que, em qualquer caso, não correspondeu a qualquer retirada: Mankiewicz ainda dirigiu mais algumas preciosidades, incluindo essa admirável farsa policial que é Sleuth/Autopsia de um Crime (1972).
Mas não é a essa herança que me refiro. Penso, sobretudo, no facto de Cleópatra, rodado no período áureo das “superproduções” em 70mm, corresponder a um conceito de grandiosidade que, por mais voltas que se dêem, não encontra correspondência nos ecrãs caseiros, mesmos os maiores e mais sofisticados.
Peço que não me interpretem mal. Não menosprezo (longe disso) a revisão de clássicos do cinema em televisão; além do mais, a cópia de Cleópatra agora disponível constitui, de facto, um caso exemplar de transcrição da película para os formatos digitais. Acontece que vale a pena perguntar (voltar a perguntar) de que modo o espaço televisivo trabalha para preservar as memórias do cinema clássico.
Existe, afinal, um défice de colaboração entre os territórios cinematográfico e televisivo. E por mais que se diga que, hoje em dia, a sua fronteira é tão ténue quanto instável, nada disso justifica que o carácter específico do cinema — em particular do classicismo cinematográfico — seja secundarizado como coisa mais ou menos pitoresca. Dir-se-á: não compete às televisões fazer pedagogia cinematográfica... Talvez, mas o que está em jogo é, antes do mais, de natureza comercial — pensar que um público alheado da pluralidade das memórias é um bom público não passa de uma ilusão do marketing mais canhestro.