domingo, novembro 22, 2015

Memória de Paulo Cunha e Silva

MORTE EM VENEZA (1971)
Paulo Cunha e Silva (1962-2015) deixou-nos um legado de ver e querer ver, pensar e compreender, que desembocou numa derradeira iniciativa em torno do tema, utópico entre todos, da Felicidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Novembro), com o título 'A felicidade de Paulo Cunha e Silva'.

Estive pela última vez com Paulo Cunha e Silva (falecido na quarta-feira, 11) no dia 20 de Setembro, numa sessão no auditório da Biblioteca Almeida Garrett, nos Jardins do Palácio de Cristal, no Porto. Integrado num ciclo de cinema organizado no âmbito da Feira do Livro do Porto, projectava-se o filme Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti.
A notícia brusca e brutal da sua morte confere um eco particular a esses momentos. Desde logo, porque se tratava de mais uma iniciativa, como muitas outras a que Paulo Cunha e Silva esteve ligado ao longo dos anos (nomeadamente na Fundação de Serralves), de inusitado impacto — ver aquela sala esgotada para assistir a uma “antiguidade” como Morte em Veneza (para mais em dia de jogo grande no Estádio do Dragão) não é coisa banal ou desprezível. Além do mais, a organização do evento, através da acção do Cineclube do Porto, tinha conseguido uma raridade absoluta: o filme de Visconti foi projectado, não em formato digital, mas numa velha cópia de 35 mm.
Paulo Cunha e Silva
A cópia, todos o reconhecemos, não era tecnicamente imaculada, quanto mais não seja porque o triunfo tecnológico e comercial do digital (cujas vantagens não estão em causa) produz sequelas dramáticas no funcionamento da exibição cinematográfica que, escusado será sublinhá-lo, estão muito para além do caso particular deste filme de Visconti. O certo é que a sessão não pôde deixar de ilustrar uma lição básica, mas essencial, que o trabalho de Paulo Cunha e Silva nos legou. A saber: o progresso cultural não é assunto de mera acumulação de “novidades”, nascendo antes de uma permanente abertura à possibilidade de combinar os desejos e interrogações do presente com a multifacetada riqueza de todos os passados culturais. No plural, claro.
A valorização de tal lição não é, neste caso, para mim, dissociável do reencontro com um filme que levei muito tempo a compreender. Descobri-o, de facto, num momento em que algumas ilusões “progressistas” impunham a recusa ou, pelo menos, um certo distanciamento da visão “antiquada” de Visconti. Afinal de contas, no mesmo ano de 1971 surgiam em Itália dois filmes “políticos” que, em Maio de 1972, viriam a vencer, ex-aequo, o Festival de Cannes — eram eles A Classe Operária Vai para o Paraíso, de Elio Petri, e O Caso Mattei, de Francesco Rosi. Valeria a pena revê-los e reavaliá-los.
Mais de quarenta anos depois, Morte em Veneza é “apenas” um filme que, de acordo com o tema que Paulo Cunha e Silva escolheu para ligar as actividades da Feira do Livro do Porto, nos confronta com as atribulações da Felicidade. Cruel palavra: felicidade. Por um lado, envolve um impulso utópico de que, apesar de tudo, não desistimos; ao mesmo tempo, por outro lado, faz-nos sentir a escassez de qualquer programa cultural que não encontre expressão mais geral nas opções de governação, não apenas de um município (seja ele qual for), mas de todo um país.