quinta-feira, outubro 22, 2015

Portugal, 1942, por Carlos Saboga (1/2)

CARLOS SABOGA
(FOTO: Reinaldo Rodrigues / Global Imagens)
A uma Hora Incerta recorda um Portugal vigiado pela PIDE; para Carlos Saboga (argumentista e realizador), tudo passa pela concepção das personagens e o trabalho dos actores — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (18 Outubro), com o título 'Choca-me a falta de interesse pelo passado de alguma juventude'.

De onde vem o título A uma Hora Incerta e porque é que o escolheu?
Vem de um poema de Primo Levi que se chama Sobrevivente. É, de resto, uma citação de um outro poema, de Coleridge, que por sua vez se inspirou num provérbio latino, “mors certa, hora incerta”, ou seja, a morte está certa, mas a sua hora não se conhece. Gosto muito da expressão, porque não é só a morte que é incerta, mas a própria vida — a única coisa que não é incerta é que nascemos. E creio que as personagens vivem, de facto, uma hora incerta.

Será o filme uma crónica histórica, sobre o ano de 1942, que se vai transformando numa parábola?
Parábola não sei se será o termo... Para mim, é uma história de amor de uma rapariga que quer ser reconhecida pelo pai. Creio que não será um acaso que os meus filmes tenham sempre um pano de fundo histórico, como se a história tivesse mais ou menos a mesma importância que um cenário. A uma Hora Incerta nasceu, sobretudo, de recordações de infância, por vezes ligadas ao cinema, em particular a um filme de 1943, de Lewis Milestone, sobre a resistência norueguesa aos nazis, com Errol Flynn e Ann Sheridan, entre nós chamado Um Raio de Luz (Edge of Darkness) — não tem a ver com o filme que fiz, mas foram recordações desse tipo que me levaram a pensar numa história passada durante a guerra. São recordações que me remetem para a infância, quando ia ver um filme, por exemplo, apenas porque era com o Gary Cooper — ainda hoje, para mim, o mais importante são os actores.

As personagens pertencem mais à história ou a essas memórias da infância?
São as personagens que me guiam na escrita do argumento, são elas que me levam a inventar situações, mais do que a intriga. Escrevi muito para televisão onde, para realizadores e produtores, a intriga era o mais importante, o que acabava por afectar as personagens.

Como construiu as personagens dos inspectores da PIDE, interpretados por Paulo Pires e Pedro Lima?
Quando penso naquela época em Portugal, escusado será dizer que a PIDE teve imensa importância. A minha família era da oposição, sendo o meu pai comunista, e lembro-me dele na clandestinidade ou, então, preso — deixei de o ver aos oito anos, só o reencontrando na prisão ou através de encontros clandestinos que ele me marcava, com senha e tudo. Fico sempre surpreendido com o facto de os inspectores da PIDE não aparecerem com mais frequência na nossa ficção literária e cinematográfica. Não sou pioneiro, claro, mas achei que valia a pena abordá-los, precisamente enquanto personagens, não como meros símbolos.

São personagens definidas através de uma hierarquia, mas também de um subtexto sexual, muito discreto, mas muito intenso.
O que há em todas as minhas personagens é uma parte de mistério que não sei muito bem o que é, que não compreendo nem procuro compreender.

Até que ponto isso contaminou a célebre questão da “reconstituição” da época?
Começo por fazer um trabalho aprofundado de documentação. É algo que me ocupa muito tempo e depois... esqueço. Daí que, realmente, “reconstituição” não seja a boa palavra. Até porque há muitos anacronismos no filme que não me incomodam, porque não traem o clima da época, o “ar do tempo”. O grande anacronismo é o momento em se que ouve a banda sonora de Casablanca: o filme foi, de facto, lançado em 1942, mas só seria exibido em Portugal em 1945.

Depois de Photo (2013) e, agora, com A uma Hora Incerta, sente-se mais livre a realizar a partir dos seus argumentos?
Provavelmente, a resposta é sim. Mas é sobretudo uma questão lógica: há sempre problemas quando se escreve, mas agora escrevo com menos terror da página branca.

E ao fazer um filme como A uma Hora Incerta, o que espera do próprio espectador?
Claro que não sou missionário, não penso que vou mudar o mundo com um filme. Mas choca-me muito a ignorância da história e, sobretudo, a falta de interesse pelo passado que encontro em alguma juventude. Todos os meus projectos têm e terão a ver com a história, incluindo a história do próprio cinema.