domingo, outubro 25, 2015

O PCP em banda desenhada

KARL MARX
(1818-1883)
1. É verdade que, ao longo do século XX, em nome do comunismo, se cometeram crimes horrendos cujos ecos políticos, afectivos e simbólicos não podem nem devem ser rasurados. Em todo o caso, seria mera estupidez moral considerar que o Partido Comunista Português, ou qualquer um dos seus militantes, devam ser considerados como entidades que só podem viver na infinita expiação desses crimes — ainda que, uma vez mais, seja oportuno recordar que o continuado silêncio do PCP, e de todos os seus militantes, sobre tais crimes configura uma atitude politicamente pueril que contraria a saúde democrática de toda a sociedade.

2. É igualmente verdade que existe disperso na sociedade portuguesa um sentimento anti-comunista que tende a confundir-se com as mais sinistras manifestações fascizantes. Por isso mesmo, em nome da democracia, continua a ser importante renovar o voto político formulado por Melo Antunes, em 1975, no emblemático "Documento dos Nove", (re)colocando o PCP no interior da dinâmica democrática — isto não omitindo, claro, que o nosso aqui e agora não se confunde, nem de longe nem de perto, com a conjuntura de 1975.

3. Nada disto impede — bem pelo contrário: justifica e legitima — o reconhecimento dos ziguezagues discursivos do PCP nos últimos meses, no mínimo dando provas de uma hipocrisia que não se adequa à continuada exaltação do "povo", dos "trabalhadores" e da defesa dos seus "interesses". Entre as muitas reveladoras peripécias que podemos observar e coligir, eis três exemplos que, por si só, definem um pequeno conto do absurdo.

OJE, 13 Junho 2015
EXPRESSO, 30 Setembro 2015
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24 Outubro 2015

4. Há uma dimensão caricatural, de sugestiva banda desenhada, em tais peripécias. Mas será bom não empolá-la. Dito de outro modo: o que aqui encontramos são sintomas de um processo histórico incomparavelmente mais fundo, espalhado por um tempo muitíssimo mais longo e complexo, em alguns casos com lamentáveis manifestações de intolerância do PCP em relação ao Partido Socialista (e, ironicamente ou não, ao seu dirigente António Costa). A questão é esta: o PCP é detentor convicto de um gigantesco passado de sistemática demonização do mesmo PS com o qual, agora, diz ter um acordo "bem encaminhado" — além do mais, não vejo a maioria da nossa classe jornalística, sempre tão empenhada em encostar à parede o mais incauto político que possa ter dado dois espirros com sons diferentes, a fazer o mais pequeno esforço para questionar o PCP sobre tão obscenas contradições.

5. Assombramento que se renova: nada disto pode ser dissociado da possibilidade fulcral de o PS assumir uma atitude de pensamento e criatividade face ao dilema tradicional "direita/esquerda" e, mais especificamente, à sua identidade partidária, ideológica e ética. Perante a continuada demissão do PS face a tal desafio, compreende-se que a chamada de atenção de Cavaco Silva para a insuficiência operacional daquele dilema — e para a gravidade de outro chamado Europa — seja maioritariamente tratada como obra do demónio. Em Portugal, é sempre mais fácil insultar quem se atreva a pensar do que... pensar.