1. O jornal Le Monde chama-lhe "uma foto para abrir os olhos". E fá-lo pelas mais básicas razões humanitárias: nos seus indefesos 3 ou 4 anos de idade, o pequeno Aylan Kurdi é uma das vítimas mais expostas, porventura mais tragicamente simbólicas, do drama dos refugiados que está a assolar a Europa [actualizações na BBC]. Aliás, o respectivo editorial demarca-se mesmo de qualquer deriva gratuita: "Le Monde já publicou fotos de crianças mortas, nomeadamente quando do ataque químico contra um bairro de Damasco pela soldadesca de Bachar Al-Assad, em 2013. Não há, aqui, nenhum voyeurismo, nenhum sensacionalismo. Apenas a vontade de captar uma parte da realidade do momento"."
2. Justamente: não se trata de lançar qualquer sugestão de acusação contra quem mantém esta disponibilidade para reflectir sobre as questões deontológicas e sociais relacionadas com as imagens, sua produção e difusão. Multiplicaram-se, aliás, as chamadas de atenção para a dificuldade de estabelecer um padrão universal para a complexidade dos problemas que se colocam [no El Pais, por exemplo, faz-se mesmo um elucidativo balanço, titulando: "A foto da criança morta na praia divide a imprensa internacional"].
3. O que desconcerta é o facto de, com pendular regularidade, certas imagens serem convocadas para esta avaliação, com muitos argumentos (cuja seriedade não está em causa) a explicar "porque decidimos publicar" a foto em questão. Aliás, a reflexão parece resultar tanto da própria foto como do facto de todos os intervenientes saberem, ou pressentirem, que ela vai ser infinitamente reproduzida (tornando-se "viral", como diz a gíria cega da Internet).
4. Acontece que todos os dias coabitamos com práticas jornalísticas como a que podemos observar nesta edição de The Sun (Janeiro 2008, sobre a dependência de drogas de Amy Winehouse). Sublinho: todos os dias há por esse mundo fora uma imprensa que desqualifica a própria imprensa, alheando-se de qualquer centelha de humanismo — e não parece existir (aliás: não existe) a mais discreta reflexão sobre o efeito de tais práticas no mundo dos jornais, jornalistas e leitores, e também na dinâmica e nos valores do tecido social.
5. Subitamente, sentimos que Aylan Kurdi foi compulsivamente promovido à condição de protagonista de uma saga em que, no limite, apenas se discute o incómodo interior do próprio jornalismo que o elegeu como símbolo. Símbolo de quê? Não apenas da tragédia dos refugiados, mas dos próprios fantasmas conceptuais e éticos do trabalho jornalístico. Podemos, aliás, perguntar: porque é que não se discutem os mesmos temas de "legitimidade" figurativa a propósito de imagens como estas?
6. Serão tais imagens menos importantes, porventura dispensáveis porque de menor valor informativo? Pertencem a um admirável trabalho jornalístico de Paolo Pellegrin (fotos e videos) e Scott Anderson (texto), no New York Times, com o título 'Desperate Crossing'. Será que o horror do destino de Aylan Kurdi torna as fotografias de Pellegrin fracas? Ou descartáveis? Ou menos exigentes em relação à reflexão que, sobre elas, ou a partir delas, possamos desenvolver?
7. Entre os efeitos da agitação discursiva, especialmente televisiva, em torno da fotografia do cadáver de Aylan Kurdi, o mais desconcertante será: tudo se passa como se, pelo menos durante 24 horas, só existisse — ou só pudesse existir — uma única e solitária imagem no nosso mundo de imagens. Mais do que isso: conscientemente ou não, dir-se-ia que, hoje em dia, no espaço mediático-jornalístico, existe a vontade totalizante de colocar o mundo inteiro a ver o mesmo ao mesmo tempo. Lição das coisas: a maximização dos circuitos de difusão promove a minimização dos olhares.