YASUJIRO OZU (1903-1963) |
De que falam os partidos quando (dizem que) falam de cultura? E, no espaço cultural, como pensam (ou não pensam) o poder cultural televisivo? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Agosto).
Com típica euforia mediática, sobretudo televisiva, proliferaram as citações da afirmação de António Costa (em entrevista ao jornal Sol) segundo a qual encararia a possibilidade de um Bloco Central “só se houver uma ameaça de invasão de marcianos”... Enfim, num país de imagens pitorescas, é natural que a informação seja muitas vezes tratada como hipótese de pitoresco.
Poucos foram os que destacaram o facto de o líder do Partido Socialista ter manifestado a vontade de refazer um ministério para a área da cultura. Aliás, Costa não se limitou a revalidar esse modelo que vigorou até José Sócrates (inclusive); ao mesmo tempo, definiu como tarefa prioritária de tal ministério a integração das áreas de “audiovisual, imprensa, rádio e novos media”.
Essa possível abrangência de um novo ministério da Cultura envolve um fascinante desafio ideológico. Na verdade, nos últimos anos, todos os partidos políticos (incluindo o PS) foram metodicamente evitando qualquer tomada de posição sobre o desenvolvimento do audiovisual, em particular remetendo-se a um silêncio cúmplice face ao triunfo da obscenidade populista em muitas zonas do território televisivo. Ora, pede-se à classe política algo mais do que a acumulação de frases de pueril exaltação do legado de Manoel de Oliveira — o cinismo ofende e a gestão política da Cultura não se faz por soundbytes.
O assunto é delicado, recomendando alguma desdramatização legislativa. De facto, pensar — e, primeiro que tudo, pensar politicamente — o populismo televisivo não é o mesmo que dizer que as empresas dessa área devam ser sujeitas a qualquer interdição decorrente de alguma legislação autoritária sobre os “conteúdos” que produzem ou difundem, mesmo os que são apenas lixo.
Acontece que o Estado (salvo melhor opinião, tal “coisa” ainda existe) deve encarar os desequilíbrios que podem afectar a dinâmica de todas as áreas sociais, incluindo a cultura. Só mesmo as boas almas esperarão que os espectadores educados pelo modelo telenovelesco há quase quatro décadas (desde 1977, para sermos precisos) terminem o serão descobrindo as cópias restauradas dos filmes de Yasujiro Ozu...
A caricatura é, infelizmente, realista. De um realismo que exige ao Estado a criação de condições para a continuada diversificação da produção, difusão e também, hélas!, promoção dos produtos audiovisuais. O projecto de um novo ministério da Cultura constitui, por isso, uma perversa caixa de Pandora que forçará todos os partidos (a começar pelo PS) a testar a sua visão da vida cultural portuguesa, nem que seja através de uma típica atitude de demissão.
Para já, sublinhemos o facto de alguém da área política reconhecer aquilo que, há décadas, tem sido humildemente dito e repetido por alguns dos menos bafejados pelo talento da arte política. A saber: a televisão é um território de permanente confronto de valores, não um paraíso isento de implicações culturais — é mesmo um dos espaços vitais da nossa identidade cultural.