O filme de Asif Kapadia sobre Amy Winehouse constitui um brilhante exercício documental, desde já com um lugar importante nas relações entre cinema e a paisagem imensa do rock — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Julho), com o título 'Memórias e fantasmas da música rock'.
Há quase sessenta anos, Elvis Presley estreava-se no cinema como estrela de um “western” recheado de canções cujo título retomava, aliás, um dos seus maiores sucessos: Love Me Tender (1956), dirigido por Robert D. Webb, pode ser considerado o prólogo das multifacetadas relações entre o mundo dos filmes e a paisagem imensa do rock. O acontecimento envolvia mesmo qualquer coisa de predestinação, consagrada numa emblemática frase promocional: “O Sr. Rock’n’roll nasceu para interpretar esta história”.
A estreia de Love & Mercy/A Força de um Génio, de Bill Pohlad, constitui um dos mais recentes capítulos dessa saga cinema/música, tanto mais significativo quanto estamos perante um filme que aposta em revisitar a personagem de Brian Wilson muito para além de qualquer cliché biográfico.
Escusado será dizer que há muito se desvaneceram as ilusões românticas que Presley encarnava (mesmo contra sua vontade, já que nunca escondeu uma enorme insatisfação com a maior parte dos filmes que protagonizou). A história da música popular passou a ser um labirinto de coisas contraditórias, como se cada momento de euforia atraísse um fantasma fúnebre. No limite, parece haver mesmo maldições instaladas, como a dessa impressionante galeria de figuras que morreram aos 27 anos: Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Kurt Cobain, Amy Winehouse... Esta última é agora tema de um notável documentário, realizado por Asif Kapadia e intitulado apenas Amy.

O exemplo de Amy remete-nos para uma zona paralela, de raízes e componentes que são, no essencial, de natureza documental. Aliás, vale a pena perguntar se muitos aspectos da dimensão mitológica do rock não são indissociáveis dos ecos que, sobretudo durante as décadas de 60/70, a música encontrou em alguns filmes que, justamente, documentaram personagens, eventos e contextos de invulgar importância artística e simbólica.
Woodstock (1970), de Michael Wadleigh (em cuja equipa trabalhou um cineasta ainda pouco conhecido chamado Martin Scorsese), será o primeiro título que vem à memória. O registo do festival realizado de 15 a 18 de Agosto de 1969, perto da cidade de Bethel, Nova Iorque, transformou-se numa referência emblemática da cultura popular, eternizando performances de Joe Cocker, The Who, Richie Havens, Joan Baez ou Jimi Hendrix, entre muitos outros — encerrando as utopias dos anos 60, o filme estabelecia padrões de rodagem que, de uma maneira ou de outra, influenciaram o desenvolvimento do “filme-concerto”.
Tal sub-género tem persistido em todas as épocas, dando origem a experiências muito variadas, incluindo: Monterey Pop (1968), assinado pelos irmãos Maysles; Gimme Shelter (1970), em que D. A. Pennebaker filma o célebre e trágico concerto dos Rolling Stones em Altamont, a 6 de Dezembro de 1969; e Stop Making Sense (1984), com os Talking Heads filmados por Jonathan Demme. Scorsese viria a ser um dos autores em destaque nessa evolução, registando, por exemplo, o concerto de despedida de The Band em A Última Valsa (1978) ou, mais recentemente, uma performance dos Rolling Stones em Shine a Light (2008).
Paralelamente, assistiu-se ao desenvolvimento de uma outra tendência, de algum modo complementar: o “filme-sobre-uma-digressão”. Pelo menos no plano conceptual, o seu título fundador será Dont Look Back (1967), de D. A. Pennebaker, entre nós lançado como Eu Sou Bob Dylan. Acompanhando os concertos de Dylan em Inglaterra, em 1965, Pennebaker conseguiu a proeza de registar os prós e contras de um ambiente em que espectadores e imprensa discutiam acaloradamente o facto de Dylan ter integrado guitarras eléctricas na sua música (a partir do álbum Bringing it All Back Home, lançado em Março daquele ano), ao mesmo tempo que ele próprio dava sinais de uma obstinada resistência à sua transformação simbólica (ou mediática, como diríamos agora) em “porta-voz” de toda uma geração. Aliás, alguns dos mais brilhantes filmes sobre digressões — como Na Cama com Madonna (1991), de Alek Keshishian, ou Meeting People Is Easy (1998), de Grant Gee (sobre os Radiohead) — funcionam também como metódicas desmontagens da teatralidade que a pose de uma estrela rock pode envolver.