Não é todos os dias que um clássico de Orson Welles está disponível (numa cópia extraordinária) no espaço televisivo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Junho), com o título 'A regra contra a excepção'.
Reencontro num dos canais TVCine esse filme genial que é A Sede do Mal (1958), de Orson Welles. E não posso deixar de me interrogar sobre as especificidades de tão admirável objecto de cinema: até que ponto um título tão marcante de um momento de profundas convulsões na paisagem de Hollywood resiste aos hábitos e ritmos de consumo de um espectador contemporâneo?
Em cena está uma pequena cidade na fronteira EUA/México, assombrada por uma vaga de crimes que põe a nu toda uma teia de perversas cumplicidades. É um dispositivo mais ou menos policial que Welles trabalha para além de qualquer cliché. Desde logo porque A Sede do Mal possui uma dimensão temporal muito própria, misto de contemplação e frenesim, transparência e inquietação (recorde-se o célebre plano-sequência de abertura, desafiando, literalmente, a barreira desenhada pela fronteira entre os dois países).
Depois, importa referir tudo aquilo que contraria os valores dominantes do espaço televisivo. Este é, de facto, um filme que não confunde a “aceleração” da montagem com a criação automática de emoções e suspense — bem pelo contrário, a tensão nasce, aqui, de uma quase contemplação, construída a partir de planos relativamente longos, filmados com grandes angulares. Além do mais, será preciso referir que a sua imaculada fotografia a preto e branco (assinada por esse mestre que foi Russell Metty) nada tem a ver com o novo-riquismo “colorido” de muitas imagens contemporâneas?
Não me interpretem mal: não estou, de modo algum, a desvalorizar a passagem de A Sede do Mal (aliás, os canais TVCine têm mostrado uma crescente atenção a referências clássicas da história do cinema). Seja como for, é inevitável contrapor a excepção criativa de Welles à regra telenovelesca (intrigas rudimentares, imagens estereotipadas, actores mal dirigidos) que, todos os dias, promove a preguiça dos olhares... Para que conste, convém não menosprezar o facto de A Sede do Mal estar a passar numa cópia de qualidade técnica irrepreensível.