domingo, maio 31, 2015

O adeus de David Letterman

Com a despedida de David Letterman na apresentação de The Late Show, conclui-se um capítulo fulcral da história da televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Maio), com o título 'A herança de Letterman'.

Começou a 30 de Agosto de 1993. Terminou a semana passada, no dia 20 de Maio de 2015: David Letterman apresentou pela derradeira vez The Late Show, na CBS [video: a despedida + Foo Fighters]. Escusado será dizer que, seja qual for o ângulo de abordagem de tão longa performance, estamos perante um capítulo essencial, não apenas da televisão nos EUA, mas, afinal, de toda a moderna história televisiva.
Moderna? O adjectivo envolve alguma desconcertante ironia. De facto, o dispositivo de comunicação de que Letterman foi um caso de excelência — a personalização da apresentação como ponto de partida para a construção do espectáculo em televisão — constitui o mais primitivo, e também o mais universal, dos modelos televisivos. Tão universal e “naturalizado” no dia a dia da comunicação audiovisual que poderia mesmo atrair uma interrogação didáctica. A saber: assim como a tradição dominante no cinema estabelece que as personagens não devem olhar para a câmara, porque é que o espaço televisivo se baseia, no essencial, em figuras que... olham para a câmara?
Letterman foi um símbolo, não apenas desse olhar virtual para o espectador, mas também da responsabilidade que tal labor pode envolver. Responsabilidade? A palavra nem sempre é muito querida no espaço televisivo, uma vez que há toda uma ideologia grosseira (mas muito poderosa) que faz crer que quando o riso está envolvido, a questão fulcral da responsabilidade do comunicador em relação ao espectador não existe.
Bem pelo contrário, importa dizer. Porquê? Porque personalidades como Letterman sempre funcionaram como espelhos ambivalentes, ora didácticos, ora perversos, das muitas componentes da actualidade artística, social e política. A sua herança não se resume (muito longe disso!...) à acumulação de anedotas mais ou menos obscenas, ditas em tom de “stand up” requentado. Ele legou-nos o gosto de conversar, observar e pensar, quer dizer, a noção muito clara de que a televisão não é feita de compartimentos estanques — à sua maneira, é uma forma de realismo.



Franz Wright (1953 - 2015)

FOTO: Los Angeles Times
Nascido em Viena de Áustria, foi um dos nomes nucleares da poesia norte-americana do último meio século: Franz Wright faleceu no dia 14 de Maio, na sua casa de Waltham, Massachusetts, vítima de cancro no pulmão — contava 62 anos.
Filho do poeta James Wright (1927-1980), com ele partilhou temas, pulsões e fantasmas — o facto de James ter abandonado a família quando Franz tinha oito anos terá sido um factor determinante na formação da sua personalidade. A dependência do álcool, as marcas da depressão e, a partir de certa altura, a ânsia por uma dimensão transcendental foram marcando um trabalho poético capaz de combinar, de modo discreto, paradoxalmente fulgurante, a fragmentação das estruturas e a escolha metódica de palavras tocadas por vertiginosas hipóteses metafóricas. Com o pai partilhou também a honra de receber o Prémio Pulitzer de Poesia: James venceu com Collected Poems (1972), Franz com Walking to Martha's Vineyard (2004).

THE WORD

Like a third set of teeth
or side in a chess match


Thought

and most mysterious
of all, the
matter of thought

The mortal mind thinking
deathless things,
singing


See it examining
black grains of death
and life — they are the same
thing —
in its open hand


Sweet black green-shadowed grains of soil:
When no one is looking

see it secretly

taste one.

in Walking to Martha's Vineyard
(Alfred A. Knopf, New York, 2004)

>>> Franz Wright lê cinco poemas no Dodge Poetry Festival (2008).


>>> Obituário no New York Times.
>>> Perfil de Franz Wright na Poetry Foundation.
>>> Entrevista na NPR, em 2004, na sequência do Prémio Pulitzer.

>>> Night Flight Turbulence, video de Daniel Ahearn para um dos poemas lidos por Franz Wright no álbum Readings from Wheeling Motel, a partir de poemas do livro Wheeling Motel (2009).


Três surpresas de Cannes


Sem a mediatização dos títulos que integram a Seleção Oficial, houve entre algumas secções paralelas momentos que vale a pena reter entre o que de melhor se viu na 68ª edição do Festival de Cannes.

“Ni Le Ciel Ni La Terre”, de Clément Cogitoire
O esbatimento entre o que poderiam ser as fronteiras entre o realismo e a fantasia, entre a razão e a fé, entre os factos e os mitos, habita a alma de um dos mais interessantes entre os filmes que integram a seleção apresentada este ano pela Semana da Crítica, secção paralela do Festival de Cannes com uma história que remonta a 1962. Primeira longa-metragem do francês Clément Cogitoire, Ni Le Ciel Ni La Terre coloca-nos numa zona de fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão numa altura em que os contingentes militares ocidentais estão em processo de retirada. Mas contra o que poderíamos esperar de um filme de guerra num cenário recente com o qual talhámos um relacionamento através dos noticiários, a visão deste realizador com algum trabalho já antes feito no cinema documental não podia ser mais inesperada e desconcertante face ao que se foi contando entre os ecrãs de televisão e as páginas dos jornais. No fundo, talvez para nos lembrar de quão absurda a guerra pode ser.

Apesar do evidente protagonismo de um capitão francês (interpretado por Jéremie Renier), o corpo de militares estacionados naquele posto fronteiriço surge como um sujeito coletivo que nos coloca no local, do seu dia a dia de vigilância e da sua interação com as tribos locais – em registo claro de poder exercido do ocupante sobre o ocupado – nascendo o retrato do pouco que acontece onde não parece haver mais senão montanhas, poeira, homens e ovelhas. O desaparecimento inexplicado de vários homens ao longo de algumas noites, que afinal sucede também do lado dos talibã que tentam impedir que cruzem aqueles caminhos, lança-os numa busca tanto pelos soldados desaparecidos como pela possível explicação do sucedido. As palavras de um rapazito, que interrogam, alertam para o facto de aquela ser uma região sagrada, na qual se diz que quem adormece sobre o chão dali é retirado.

O debate entre a razão e a crença ganha corpo e domina depois o filme. O capitão, decidido a encontrar motivos, métodos e até mesmo os desaparecidos (até porque há justificações a prestar oficialmente aos superiores e famílias), arregaça as mangas e chega mesmo a dialogar com o inimigo. Ambos perderam gente nas suas fileiras. Mas cada um o explica de modo diferente. Como diferentes são também os medos que ali enfrentam.

Sob uma narrativa bem construída Clément Cogitoire faz de uma impressionante dieta de recursos um filme capaz de suportar de fio a pavio todos estes jogos de tensão. Rodado em Marrocos – na impossibilidade de um orçamento que os transportasse mais perto do local “real” – Ni Le Ciel Ni La Terre tem em Restrepo, de Sebastien Junger e Tim Hetherington (documentário de 2010 sobre a presença militar precisamente em cenário agefão) uma referência maior. Mas é no minimalismo de elementos, na nudez do cenário de montanha e na concentração de atenções nas atitudes, gestos e olhares que o realizador conduz um filme que não tem muitos instantes de distração. O choque entre uma situação que parece transcender a razão e o realismo dos comportamentos e imagens é valor que argumento e realização seguram com rara solidez para uma primeira obra. E pode agradecer parte dos louros à boa direção de fotografia de Sylvain Verdet e à opção de, nas cenas noturnas, usar câmaras de vigilância e de sensibilidade térmica que sublinham mais ainda a força de carne e osso real de uma história cujas explicações podem ir para lá do nosso plano de existência.

"Degradé”, de Arab e Tarzan Nasser 
 Apresentado na Semana da Crítica, Degradé, dos irmãos gémeos palestinianos Arab e Tarzan Nasser representa outro invulgar olhar sobre tempos de guerra. Tal e qual explicaram antes da exibição do filme, mostrado em estreia mundial, o eclodir de novos focos de luta em 2014 fez com que os pedidos que lhes endossaram para que concentrassem o filme no conflito armado os fez manter-se todavia fiéis a uma vontade de mostrar outros aspetos da vida e não apenas da morte em Gaza, sublinhando contudo que, como o filme mostra, o contexto afinal não deixa de estar presente. Degradé é um huis clos, fechando a narrativa num salão de cabeleireiro onde, ao mesmo tempo que na rua se desencadeia e intensifica um tiroteio – como resposta ao roubo, por uma família, de um leão no jardim zoológico local que serve de gatilho para ajustes de outras contas –, um grupo de mulheres espera a sua vez de ser atendida por uma emigrante russa e uma ajudante local.

É entre os diálogos e a caracterização deste grupo de mulheres que os irmãos Nasser encontram a pulsão de vida que nos transporta assim ao outro lado do que contam as notícias. Muito diferentes entre si, representando várias formas de estar na sociedade (e na sua relação com a religião), as clientes dão voz distinta, mas não distante nem indiferente, ao mundo protagonizado por homens que naquele momento luta na rua e chegará depois, pelos jornais, até mais longe. O dispositivo tem algo de teatral na forma como as dispõe no espaço e valoriza diálogos que ocasionalmente sugerem alguns instantes de comédia. Os enquadramentos que muitas vezes se socorrem dos espelhos para ver detalhes ou acompanhar reações e olhares, o tratamento da cor por uma direção de fotografia que garante coesão sóbria a todo aquele espaço e o trabalho de som que sublinha a tensão do que sucede fora de campo são valores acrescentados de uma estreia deste par de realizadores que é nome a juntar em lugar de destaque à história – em curso – do cinema palestiniano.

 “Mustang”, de Deniz Gamze Erguven 
 Uma das boas surpresas da programação da Quinzena dos Realizadores – a mesma que acolheu as Mil e Uma Noites de Miguel Gomes – chegou da Turquia. Primeira longa-metragem de Deniz Gamze Erguven, Mustang não evita contudo fazer um flirt às plateias ocidentais, o que talvez se explique pelo facto da realizadora ter crescido em França e de contar, na escrita do argumento, com a colaboração da francesa Alice Wincour. Esta é contudo uma história da Turquia do nosso tempo. Uma história no feminino, vivida entre cinco jovens irmãs que habitam numa casa nas imediações de uma povoação na costa do Mar Negro e cuja liberdade e sensualidade é vetada e abafada por uma moral castradora que dita as regras pelas quais a comunidade vive um quotidiano de repressão. Os olhares de uma vizinha – que nunca são apenas olhares, mas logo comentários, relatos e queixas – dão conta de que estavam na praia com colegas, rapazes, depois do último dia de escola.

É o ponto de partida para uma espiral de atitudes castradoras do tio e avó (mais o primeiro que a segunda), que as educam, fechando-as em casa, obrigando-as a usar vestidos neutros e compridos, ensinando-lhes culinária e outras artes da lida doméstica. O futuro imagina-as casadas e iguais às outras vizinhas. Uma a uma são pedidas em casamento. Até que a revolta estala, mostrando sobretudo a mais nova das cinco irmãs uma vontade determinada em não ceder a uma ordem à qual não se quer sujeitar.

Há aqui alguns paralelos possíveis com o que há uns anos vimos em As Virgens Suicidas, de Sofia Coppola que nos mostrava sinais igualmente castradores e violentos numa sociedade bem distinta mas onde uma certa pulsão moralista acaba por ter contornos algo semelhantes. Luminoso (tanto na fotografia como na caracterização das cinco irmãs), Mustang mostra como, mesmo numa sociedade dominada por regras anacrónicas, a força que questiona velhas ordens acaba mais tarde ou mais cedo por emergir.

Estes textos foram originalmente publicados na Máquina de Escrever.

sábado, maio 30, 2015

Humanismo contra fundamentalismo

Através da história da ocupação de uma zona do Mali por fundamentalistas islâmicos, Abderrahmane Sissako ecoa uma actualidade dramática e incontornável — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Maio), com o título 'Um filme marcado pelos valores universais do humanismo'.

Abderrahmane Sissako (cineasta da Mauritânia, nascido em 1961) desempenhou, este ano, em Cannes, as funções de presidente do júri das curtas-metragens e dos filmes apoiados pela Cinéfondation. A nota biográfica que encontramos no site do festival começa com uma citação que vale a pena reproduzir: “Quando faço um filme, tenho uma atitude de dúvida constante, e sei que isso é visível. Mas, muito lá no fundo, como que escondida, acompanha-me uma convicção que não partilho com ninguém”.
Perante a estreia de Timbuktu (que esteve na competição de Cannes, em 2014), importa sublinhar essa convicção. Este é, obviamente, um filme motivado pela crença muito forte no cinema como instrumento privilegiado para alertar os espectadores para as convulsões do mundo contemporâneo, nessa medida reavivando as componentes mais básicas da tradição do chamado “cinema político”.
Abderrahmane Sissako
Em cena estão o poder, a arbitrariedade e as formas de violência de um grupo de fundamentalistas islâmicos que impõem as suas leis numa pequena comunidade do Mali. Desde o consumo dos cigarros à escuta da música, passando pela prática do futebol, todas as actividades quotidianas são sujeitas a um apertado sistema de normas que elege o terror como modelo de “equilíbrio” social. Centrando a sua acção nos dramas enfrentados pela família de um pastor, Timbuktu distingue-se por um metódico realismo que, além do mais, possui o mérito de resistir a todas as formatações mediáticas, em particular de natureza televisiva.
Não é secundária esta questão. Enquanto “consumidores” de notícias, estamos todos expostos a modelos de informação que tendem a privilegiar a fragmentação e o soundbyte, menosprezando a complexidade labiríntica de universos em que, como é o caso, a intolerância se combina com o poder das armas. Nesta perspectiva, importa não esquecer que o trabalho de Abderrahmane Sissako visa, em última instância, a celebração de um Islão aberto e tolerante, tradicionalmente sensível aos valores universais do humanismo.

sexta-feira, maio 29, 2015

A IMAGEM: Mary Ellen Mark, 1990

MARY ELLEN MARK
Amanda e a sua prima Amy (Valdese, Carolina do Norte)
1990

7 x Oliveira (6)

O QUINTO IMPÉRIO (2004)
[ Douro, Faina Fluvial ]  [ Acto da Primavera ]  [ Benilde ou a Virgem Mãe ]  [ Amor de Perdição ]
[ Viagem ao Princípio do Mundo ]


Ricardo Trêpa no papel de um desamparado D. Sebastião; Luís Miguel Cintra como um conselheiro perverso, talvez sem estatuto social para a função — de novo inspirando-se em José Régio (cerca de três décadas depois de Benilde), Manoel de Oliveira coloca em cena a amarga identidade portuguesa, dividida entre o pragmatismo da sua fragilidade e o conforto enganoso de todas as utopias. É, por certo, um objecto central na história da moderna cultura portuguesa, muito para além de qualquer lógica tele-ilustrativa das chamadas "reconstituições" históricas — fazer história envolve sempre a construção de um discurso que não esclarece milagrosamente o passado, antes refaz o presente.

Madonna, Jane Fonda & etc.

Assim vão os tempos: aos 56 anos, Madonna suscita as censuras dos puristas dos costumes que não aceitam que se possa "envelhecer", assim, nos espaços do entertainment; entretanto, Jane Fonda, no esplendor dos seus 77 anos, é um símbolo eterno do feminino... A própria, aliás, não deixa de ser sensível à paradoxal ironia: "Acho que é hilariante que, na minha idade, as pessoas me chamem um ícone da moda", desabafa ela numa interessantíssima conversa com Lynn Hirschberg, na edição de Junho/Julho da revista W, acompanhada de fotografias assinadas por Steven Meisel (fotógrafo de eleição de Madonna, hélas!, que com ela fez, por exemplo, o livro Sex). Em boa verdade, por certo de modos diferentes e a partir de trajectórias sem (quase) nada em comum, Fonda e Madonna são símbolos exemplares de uma mesma atitude individual e individualista: a não abdicação de contar a sua própria história.
Provavelmente, daqui a trinta anos, as actuais performances de Madonna serão celebradas como testemunhos incontornáveis de uma mudança essencial na percepção social do envelhecimento e também de uma reconversão simbólica do feminino (como agora acontece com as suas presenças iniciais na MTV, na altura reduzidas por quase todos a manifestações mais ou menos ridículas...). Ou como diria Jane Fonda: "Nos meus dias maus, digo para mim própria: 'Fonda, tu és resistente e nunca deixaste de tentar ser melhor.' É esse o meu mantra e salvou-me muitas, muitas vezes."
MADONNA
Foto de Mert Alas & Marcus Piggott, Vogue Paris (Fevereiro 2015)
JANE FONDA
Foto de Steven Meisel, W (Junho/Julho 2015)

Lianne La Havas, opus 2

Fiel a um requintado espírito soul, marcado por pontuações folk, a talentosa e versátil Lianne La Havas está de volta. Depois de ter sido uma das grandes revelações de 2012, com Is Your Love Big Enough?, a cantora inglesa, de ascendência grega e jamaicana, vai lançar em Julho o seu segundo álbum, intitulado Blood — eis o primeiro teledisco, Unstoppable.

quinta-feira, maio 28, 2015

Cannes 2015 [branco]

JL
As mudanças introduzidas na entrada do Grande Auditório Lumière não terão sido as mais felizes. O branco de chão e tecto cria uma espécie de cenário de ficção científica (THX 1138?) que não favorece a espera, a paragem, a deambulação ou o diálogo: passou a ser apenas um lugar de passagem. Em qualquer caso, não desapareceu a tradição das fotos dos cineastas representados na secção competitiva — Moretti, riso sereno, vigia a nossa velocidade.

Mary Ellen Mark (1940 - 2015)

Mary Ellen Mark
Fotografou grandes vedetas das artes, em particular do cinema, mas soube também ser fiel à complexidade das figuras anónimas: Mary Ellen Mark faleceu no dia 25 de Maio, em Nova Iorque, vítima de síndrome mielodisplásica — contava 75 anos.
Nascida nos subúrbios de Filadélfia, seria em Nova Iorque, em meados da década de 60, que se consolidaria a sua personalidade artística, em particular através das imagens que foi recolhendo de momentos emblemáticos da época, desde os protestos contra a guerra do Vietname até ao movimento de libertação das mulheres. Sempre atenta às singularidades de cada ser humano, fosse ele um peão do quotidano ou uma grande estrela de Hollywood, construiu uma obra admirável, de uma maneira ou de outra comandada por uma sensibilidade humanista, feita de contundência e compaixão.
Acompanhou as rodagens de diversos filmes, entre os quais Satyricon (1969), de Federico Fellini, e Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola. Assinou portfolios para revistas como a Life, Rolling Stone, The New Yorker e Vanity Fair. Entre os seus álbuns mais célebres, incluem-se Streetwise (1982), Portraits (1995) e American Odyssey (1999); o seu derradeiro livro, Tiny: Streetwise Revisited, será publicado ainda este ano, com chancela da Aperture, e reencontra os jovens sem casa de Streetwise, fotografados em Seattle no início dos anos 80. Na lista imensa de distinções que recebeu, inclui-se o Prémio Cornell Capa (2001), atribuído pelo Centro Internacional de Fotografia.

>>> Obituário no New York Times.

Jim Carrey (Hollywood, 2001)
Rat e Mike com uma pistola (Seattle, 1983)
Tiny no Halloween (Seattle, 1983)

SOUND + VISION Magazine
— hoje na FNAC

Cannes é tema forte do nosso SOUND + VISION Magazine: em revista estarão imagens e sons do maior festival de cinema do mundo — hoje, quinta-feira, 18h30, na FNAC do Chiado.

Vicente Aranda (1926 - 2015)

Porventura dos menos conhecidos autores do cinema espanhol fora do seu próprio país, foi também um dos mais versáteis e talentosos: Vicente Aranda faleceu na sua casa em Madrid no dia 25 de Maio — contava 88 anos.
A consagração com o filme Amantes (1991), com Victoria Abril, valeu-lhe o rótulo de cineasta do "sexo" e do "escândalo", francamente simplista para definir o seu trabalho e até para dar conta da variedade temática da sua filmografia. Evoluiu desde o experimentalismo das novas vagas, com Fata/Morgana (1965), até uma recriação de Carmen (2003), com Paz Vega, o último dos seus filmes que chegou às salas portuguesas. Ao longo de uma carreira de quase três dezenas de títulos, filmou também, por exemplo, os bastidores femininos da Guerra Civil espanhola, em Libertarias (1996), e a saga da rainha Joana, no começo do séc. XVI, em Joana, a Louca (2001). Amantes valeu-lhe um Goya de melhor realização.

>>> Obituário no El Pais.

O riso dos bebés

Não é todos os dias que os bebés são representados como... bebés. Sem formatações moralistas nem sermões pomposos — pequenos, irredutíveis, geniais. Para mais no contexto de uma mensagem publicitária. Eis um belíssimo exemplo de como os adultos (publicitários incluídos) também podem saber admirar a arte de rir em ponto pequeno.

quarta-feira, maio 27, 2015

Cannes 2015 [Inglewood]

Dir-se-ia que o hip hop possui uma genealogia que, ao contrário do rock, não encontrou uma correspondência de "género" no próprio cinema. Talvez porque, no hip hop, o valor da "mensagem" tende a prevalecer sobre as especificidades da performance. Excepção a ter em conta: Dope, o filme de Rick Famuyiwa que encerrou oficialmente a Quinzena dos Realizadores. Os protagonistas têm uma banda de hip hop, celebrando de forma veemente os sons da década de 90, mas o filme está para além de qualquer "transcrição" musical — é antes uma comédia, amarga e doce, sobre o crescimento numa zona difícil de Inglewood, Califórnia, tanto mais envolvente quanto elabora uma estrutura narrativa de invulgar dinâmica visual e emocional (ganhou um prémio de montagem, para Lee Haugen, no Festival de Sundance).

Primeiro candidato a Oscars?

Todas as especulações não passam disso mesmo... O certo é que começam a estar alinhadas as estreias de alguns filmes que poderão ter alguma visibilidade nas nomeações para os próximos Oscars (a atribuir no dia 28 de Fevereiro de 2016). Pawn Sacrifice, de Edward Zwick, talvez esteja nessas condições (Zwick é detentor de um Oscar, como produtor, por A Paixão de Shakespeare, melhor filme de 1998).
Pawn Sacrifice evoca o célebre confronto entre o americano Bobby Fischer e o russo Boris Spassky, na disputa do título do campeão do mundo de xadrez, em 1972, com a Guerra Fria em pano de fundo; Tobey Maguire e Liev Schreiber interpretam, respectivamente, Fischer e Spassky. O filme está agendado para 18 de Setembro nas salas dos EUA, com estreia portuguesa marcada para 15 de Outubro — eis o primeiro trailer.

terça-feira, maio 26, 2015

Cannes 2015 [Marion]

JL
Subindo o Boulevard Carnot, ao cair da noite. No silêncio que se anuncia, Marion Cotillard vigia a angústia branda da luz em nome da Casa Dior — o real é mais cinematográfico que o cinema.

A IMAGEM: Steven Klein, 2015

STEVEN KLEIN
Hilary Rhoda (p/ Eli Tahari)
2015

Cannes: Audiard, Varda e os outros

O júri de Cannes, pouco antes da cerimónia de encerramento
Foi um festival pleno de obras das mais diversas origens, diferentes e estimulantes: a 68ª edição de Cannes terminou com a vitória de Dheepan, de Jacques Audiard — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Maio), com o título 'Drama global dos refugiados ecoa na Palma de Ouro de Cannes'.

Se os prémios de um festival de cinema servem também para reflectir os pontos de vista dominantes dos seus espectadores, importa dizer que o júri da 68ª edição de Cannes, presidido pelos irmãos Joel e Ethan Coen, conseguiu uma boa síntese: a Palma de Ouro para Dheepan, do francês Jacques Audiard, distinguiu um filme cuja actualidade política e simbólica foi amplamente reconhecida. Apontado por alguns como vencedor “obrigatório”, o mestre de Taiwan, Hou Hsiao-Hsien, recebeu o prémio de realização por The Assassin, evocação operática dos conflitos de poder na China do séc. IX.
Jacques Audiard
Num contexto em que os cidadãos europeus têm sido confrontados com o complexo problema dos refugiados, Dheepan consegue chamar a atenção para um facto que importa não esquecer: esse é um drama que transcende, e muito, as zonas geográficas próximas da Europa. Audiard encena, assim, a odisseia de um ex-militar do Sri Lanka (de nome Dheepan) que, com uma família “forjada”, tenta sobreviver num bairro problemático dos arredores de Paris.
A consagração de Son of Saul, do húngaro László Nemes, com o Grande Prémio (o segundo na hierarquia do palmarés), decorre do mesmo tipo de preocupações. Muito para além das regras tradicionais do filme sobre a Segunda Guerra Mundial, Son of Saul arrisca colocar a sua acção no interior do campo de concentração de Auschwitz, propondo uma visão de perturbante realismo que, por certo, vai dar origem a um renovado debate sobre as formas cinematográficas de abordagem do Holocausto. László Nemes (n. 1977) fica também como uma das genuínas revelações deste festival, uma vez que Son of Saul é a sua primeira longa-metragem. Ao agradecer, fez questão em lembrar que o filme foi rodado (e projectado) em película de 35 mm, formulando um voto da sua geração face à generalização dos formatos digitais: “Não queremos que a película desapareça”.
Apresentada pelo actor francês Lambert Wilson (que também já desempenhara idêntica função na abertura), a cerimónia dos prémios de Cannes, transmitida em França pelo Canal +, voltou a ser uma mistura algo incoerente, de excessiva duração. Por um lado, parece ter havido a preocupação de diversificar o evento (à maneira dos Oscars?...), propondo alguns intermezzos musicais, incluindo uma interpretação de um clássico da canção popular, Just a Gigolo, pelo actor americano John C. Reilly (que surgia em dois títulos da competição: Tale of Tales e The Lobster, respectivamente de Matteo Garrone e Yorgos Lanthimos). Por outro lado, desde as divagações da abertura até alguns prolongadíssimos discursos, a cerimónia ressentiu-se de um tom demasiado palavroso — Emmanuelle Bercot, vencedora do prémio de interpretação feminina no filme Mon Roi (ex-aequo com Rooney Mara, em Carol), terá sido o caso mais extremo, oscilando o seu discurso entre o panfleto profissional e a celebração confessional.
Agnès Varda
Ainda assim, a presença de Bercot no palco do Palácio dos Festivais, a par de Vincent Lindon (melhor actor por La Loi du Marché, de Stéphane Brizé), acabou por funcionar como irónico contraponto ao desencanto de vários sectores dos meios de comunicação franceses, fustigando aquilo que consideravam a mediocridade geral da representação da França na secção competitiva. Ora, foi mesmo a França a arrebatar a Palma de Ouro, pela segunda vez nos últimos três anos (Abdellatif Kechiche venceu em 2013, com A Vida de Adèle).
A consagração do cinema francês passou também pelo momento mais tocante da cerimónia, com a atribuição de uma Palma de Ouro honorária a Agnès Varda. Na sua apresentação, Jane Birkin lembrou que ela foi a única mulher no meio dos realizadores da Nova Vaga francesa, de Jean-Luc Godard a François Truffaut, passando por Jacques Demy (marido de Varda). A realizadora comoveu-se ao referir que, na casa da família, esta palma irá ser colocada ao lado de uma outra, ganha por Demy, em 1964, com Os Chapéus de Chuva de Cherburgo.
Ponto a reter: apesar de contar com três pesos pesados na competição — Nanni Moretti (Mia Madre), Matteo Garrone (Tale of Tales) e Paolo Sorrentino (Youth) —, o cinema italiano ficou fora do palmarés. Moretti, precisamente, foi o último italiano a ganhar uma Palma de Ouro, em 2001, com O Quarto do Filho. Se há alguma cinematografia claramente perdedora nesta edição de Cannes é, sem dúvida, a italiana.

domingo, maio 24, 2015

Filme de Jacques Audiard vence em Cannes

DHEEPAN
Dheepan, do realizador francês Jacques Audiard, história de um refugiado do Sri Lanka em França, arrebatou a Palma de Ouro do 68º Festival de Cannes.
Eis o palmarés atribuído pelo júri presidido por Joel e Ethan Coen:

* Palma de Ouro
DHEEPAN, de Jacques Audiard (França)

* Grande Prémio
SAUL FIA (Son of Saul / Le fils de Saul), de László Nemes (Hungria)

* Realização
Hou Hsiao-Hsien (Taiwan), pour NIE YINNIANG (The Assassin)

* Prémio do Júri
THE LOBSTER, de Yorgos Lanthimos (Grécia)

* Actriz (ex-aequo)
Rooney Mara, em CAROL, de Todd Haynes (EUA)
Emmanuelle Bercot, em MON ROI, de Maïwenn (França)

* Actor
Vincent Lindon, em LA LOI DU MARCHÉ, de Stéphane Brizé (França)

* Argumento
Michel Franco (México), por CHRONIC, de Michel Franco

Cannes 2015 [montra]

JL
O glamour é uma pose. Que é como quem diz: uma montra. Aqui, em sentido literal. Há dois anos, nesta mesma loja da rue d'Antibes, Paul Newman e Joanne Woodward vigiavam os frágeis manequins; agora, o olhar de Ingrid Bergman parece admirar a sua austeridade em negro — porque os corpos artificiais resgatam-nos das nossas humanas imperfeições.

Ted Sarandos a caminho da China

Ted Sarandos (CANNES, 15-05-2015)
De que a modo a Netflix está a mudar a televisão, quer dizer, o cinema?... A presença de Ted Sarandos em Cannes deixou algumas pistas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Maio), com o título 'A China aqui tão perto'.

Como tem sido amplamente noticiado, sobretudo pelos meios de comunicação americanos que cobrem a industria audiovisual, Ted Sarandos, chefe de conteúdos da plataforma Netflix (filmes e séries em streaming ao serviço de mais de 30 milhões de assinantes), tem sido uma das figuras centrais do Mercado do Filme [notícia + video], a decorrer paralelamente ao Festival de Cannes.
Dando conta do empenho da Netflix em adquirir cada vez mais filmes, incluindo os respectivos direitos globais de distribuição, Sarandos confirmou que está em marcha uma nova dinâmica comercial: esta plataforma televisiva pode transformar-se num parceiro fulcral do cinema, no limite estreando alguns títulos, não nas salas, mas nos ecrãs dos seus assinantes. Alias, tal envolvimento já esta a traduzir-se em diversos contratos de produção (um deles, por exemplo, com o comediante Adam Sandler).
Com o passar dos dias, foi possível compreender que o crescimento exponencial da Netflix pode transformar ainda mais o espaço televisivo. Isto porque Sarandos deu também a conhecer o próximo alvo da sua estratégia. Ou seja: o mercado chinês.
Tal hipótese não deixa de envolver alguma ironia, uma vez que os grandes estúdios de Hollywood sempre lutaram contra enormes resistências das autoridades da China (actualmente, a presença dos seus produtos é já significativa, embora submetendo-se a regras que, de forma muito rigorosa, limitam o número de lançamentos de filmes estrangeiros). Dir-se-ia que a Netflix poderá conseguir de forma relativamente rápida aquilo que a Disney e outros estúdios americanos demoraram muito tempo a conquistar. Sarandos revelou, por exemplo, que estão a ser discutidos acordos com serviços online, incluindo circuitos de streaming que já foram controlados pelo Exército do Povo. Não tenhamos dúvidas: para compreender a evolução do mercado televisivo, tanto quanto as suas crescentes interacções com o espaço do cinema, convém estarmos atentos aos negócios da Netflix.

Cannes 2015 [memórias]

Puro encantamento! No meio da agitação de Cannes, The Little Prince, de Mark Osborne, foi, por certo, dos filmes mais mal amados. Diferenças à parte, acredito que, com o passar dos anos, se dirá também que 2015 foi o ano em que as sessões extra-competição incluíram esta adaptação do livro de Antoine de Saint-Exupéry. É um objecto fabricado com um comovente respeito pelas frondosas memórias que estão envolvidas, inclusive no processo de produção: encenando a descoberta da personagem do Principezinho a partir das experiências de uma menina à beira dos exames para entrar na Academia, o filme divide-se em dois ritmos e duas formas de animação (digital para a história contemporânea, stop-motion para a história do livro). Corresponde, afinal, a uma experiência não alinhada com os padrões dominantes da Pixar e da Disney, o que, a par das suas singularidades artísticas, lhe confere um invulgar sentido comercial de risco.

Cannes 2015 [Plage]

JL
Dir-se-ia um quadro impressionista de grupos entregues a um lazer mais ou menos colectivo e indiferenciado. E é-o, até certo ponto — sábado, dia 23, fim de tarde, pouco depois das oito e meia, os espectadores preparam-se para a derradeira sessão de 'Cinéma de la Plage' (com o filme de Bryan Singer, Os Suspeitos do Costume). Recordando títulos mais ou menos emblemáticos da dimensão popular do cinema, o festival projecta-se e projecta-nos na nostalgia de um tempo que nos escapa: sereno e silencioso, o ecrã branco parece querer protagonizar uma cena futurista.

sábado, maio 23, 2015

Cannes 2015 [Dheepan]

O filme Dheepan, de Jacques Audiard, constituiu, por certo, uma das sínteses mais felizes do festival. Mesmo se o podemos considerar inferior a outros dramas de Audiard (penso, sobretudo, em Ferrugem e Osso, que competiu em Cannes/2012), há nele a capacidade de abordagem de uma temática de perturbante actualidade — o sofrimento dos refugiados, neste caso a partir da experiência de um soldado do Sri Lanka que foge à guerra civil no seu país, rumando a França —, sem nunca perder o contacto com registos mais ou menos próximos da tradição do thriller. No papel central, Jesuthasan Anthonythasan [foto] é admirável, conseguindo ser natural sem nunca ceder às facilidades correntes do naturalismo.

A pintura segundo Frederick Wiseman

Os documentários de Frederick Wiseman resultam de um muito particular sistema de trabalho: no caso de National Gallery, o seu método revela os bastidores de uma instituição, reavaliando os modos de olhar a pintura — esta entrevista (realizada no Festival de Cannes de 2014) foi publicada no Diário de Notícias (21 Maio), com o título '“Filmar é um modo de pesquisa”'.

Quando vemos o seu filme National Gallery, sentimos uma estranha e fascinante conexão entre os rostos que estão nos quadros e os rostos dos visitantes — sentiu, de alguma maneira, que estava a fazer uma espécie de pintura para o séc. XXI?
Enfim, não poderei dizer que pensei no assunto exactamente dessa maneira, mas é um facto que pensei nas relações entre as imagens de agora e as pinturas. Mais do que isso: pensei que, realmente, passou a ser possível fazer retratos através do cinema. Claro que há relações complexas entre as pessoas que estão nas pinturas e aquelas que circulam na galeria... Lembro-me, por exemplo, daquela cena em que uma guia refere que as figuras do quadro Os Embaixadores [Holbein, 1533] fizeram pose para “tirar uma fotografia”, o que não deixa de ser uma maneira sugestiva de dizer que a fotografia não existia.

Ao entrar na National Gallery, com a sua câmara e o aparelho de registo sonoro, tinha definido alguma estratégia de filmagem?
Posso dizer que segui um caminho idêntico ao de todos os meus filmes: ando pelo espaço durante algum tempo e filmo bastante, mesmo sabendo que há muitas coisas que não vão ficar na montagem final. Não sei se isso de pode considerar uma estratégia... Antes de fazer o filme nunca tinha visitado os bastidores da National Gallery, não sabia nada sobre o seu departamento científico ou o restauro dos quadros — nessa medida, filmar é também um modo de pesquisa.

Frederick Wiseman / Cannes 2014 (FOTO: JL)
Portanto, a estrutura do filme apenas surge através da montagem.
Apenas surge no fim da montagem. Em boa verdade, nem sequer penso na estrutura antes de concluir a montagem de todas as cenas que, em princípio, vou conservar na montagem final — e isso pode demorar seis a nove meses.

Em algumas cenas, parece que utilizou duas câmaras...
De facto, não: é tudo feito com uma única câmara. A sensação de duas câmaras, se existe, resulta da montagem. Isto porque, durante a rodagem, devemos pensar em mudar de posição, tendo em conta, precisamente, a montagem. Posso mesmo dizer que aprendi a filmar através da montagem.

Sente que as pessoas filmadas de alguma maneira resistem à sua presença?
É uma velha questão, claro, saber se a câmara e os microfones mudam os comportamentos. Em função da minha experiência, terei que dizer que não. Isto porque posso passar 12 horas por dia nos lugares que filmo — se filmarmos 3 horas por dia, é imenso. Na prática, há constantes repetições de comportamento. Além do mais, não creio que as pessoas tenham a capacidade de mudar os seus comportamentos: se não querem participar, limitam-se a dizer que não ou a sair de cena. Por fim, se chego à montagem e deparo com um comportamento que me parece falso, “inventado” para a câmara, é muito simples: não o uso.

E o que acontece antes das filmagens? Como é que consegue circular por aqueles espaços?
Tenho um segredo: peço licença para filmar [riso].

Mas as equipas de televisão também pedem licença e os resultados são bem diferentes.
É que eles pedem para fazer entrevistas, e eu não faço entrevistas. Chegam com luzes, e eu não as uso. E são uma equipa de seis ou sete pessoas, enquanto no meu caso somos apenas três — muitas vezes, a terceira pessoa nem sequer está na sala em que estamos a filmar.

sexta-feira, maio 22, 2015

Cannes 2015 [assassina]

Na sua pose de elegante frieza, Shu Qi está no centro do filme de Hou Hsiao-Hsien, The Assassin. Que é como quem diz: esta é a história de uma assassina, educada para combater as forças da tirania na China do séc. IX. Filme histórico? Talvez, mas entendendo a história, não como algo que se ilustra, antes como a ilustração de uma perdição, a um tempo temática e formal. Para Hou Hsiao-Hsien, a história não é um "pano de fundo" das personagens, antes uma paisagem de coordenadas em permanente mutação, transformando o espaço e o tempo em vectores para lá de qualquer percepção realista — se o cinema pode redescobrir o seu primitivo poder encantatório, é através de filmes como The Assassin.

quinta-feira, maio 21, 2015

Cannes 2015 [China]

Através de títulos como Plataforma (2000), 24 City (2008) ou Histórias de Shanghai - Quem Me Dera Saber (2010), Jia Zhang-Ke tem sido um exemplar retratista da China, por assim dizer, forçando o realismo a integrar as perturbações de um delírio à beira do fantástico. No caso de Mountains May Depart, a sua solução tem tanto de observação metódica como de ironia política. Assim, seguimos as personagens principais (dois rapazes e uma rapariga) em 1999, celebrando as utopias do novo milénio, em 2014, reflectindo o presente da rodagem, e por fim em... 2025. O resultado é uma ficção científica em que a especulação, paradoxalmente, nunca abandona a mais rigorosa verosimilhança — a China como mãe silenciosa da angústia dos seus filhos.

Cannes 2015 [linguagem]

Admirável empreendimento: a partir das gravações da longa entrevista de François Truffaut a Alfred Hitchcock, na base de um dos mais lendários livros sobre cinema — cuja primeira edição, lançada em 1966, se intitulava Le Cinéma selon Alfred Hitchcock —, Kent Jones fez um documentário que, por assim dizer, aproxima as palavras ditas das cenas dos filmes de Hitchcock. Hitchcock/Truffaut resulta, assim, uma verdadeira lição de imagem e som, celebrando o cinema como linguagem, para mais contando com a colaboração de cinéfilos como Martin Scorsese, David Fincher, Richard Linklater, Arnaud Desplechin, Olivier Assayas, etc.

quarta-feira, maio 20, 2015

Cannes 2015 [Tristeza]

É mesmo com maiúscula: Tristeza é uma das personagens do novo filme dos estúdios Pixar, Inside Out, dirigido por Pete Docter. Faz parte de um quinteto de emoções — completado por Alegria, Medo, Repulsa e Raiva — que habita o cérebro da pequena Joy, tentando equilibrar as tensões do seu crescimento. Mesmo se o filme apresenta alguns desequilíbrios estruturais, não há dúvida que a sua ideia de base é muito sugestiva: as emoções são apresentadas como forças activas de uma espécie de central informática que, melhor ou pior, vai gerindo as atribulações de Joy. A Tristeza (com voz de Phyllis Smith) é um ser comovente que, mesmo contra sua vontade, pode contaminar qualquer evento... entristecendo-o — e derramando a sua cor azul nos outros elementos da memória cerebral. Resta saber porque é que, entre nós, o original Inside Out foi "traduzido" como "Divertida-mente" [estreia a 18 de Junho]. Porque não ter em conta o exemplo do francês Vice-Versa? Ou então recorrer a esse velho recurso que se chama tradução literal, intitulando-o "Dentro e Fora" — assim, é triste.

Cannes 2015 [mercado]

Foi Godard que o disse: os "mercados" são... pessoas; em vez de falar dos "mercados" como uma maldição sem rosto, é tempo de começar a falar das pessoas. Assim acontece em La Loi du Marché (à letra: "A Lei do Mercado"), o filme de Stéphane Brizé sobre um homem que, depois de um longo período de desemprego, tenta a sua sorte como vigilante de uma grande superfície. A questão é que as pessoas vivas são empurradas para relações impessoais, como a de falar para um computador (numa entrevista de emprego), numa cena gélida, filmada de um único ponto de vista — Vincent Lindon é notável e não deixa de ser irónico que o formato scope, nascido para exponenciar a trepidação do espectáculo, possa ser aplicado, assim, como janela para uma perturbante intimidade.

Barthes na "Télérama"

1. Veja-se o panorama das revistas de televisão em Portugal. Uma regular observação dos seus conteúdos e, em particular, das suas capas, conduz-nos a uma grande questão política (que a cobardia intelectual da nossa classe política continua a evitar): porque é que a cultura televisiva portuguesa existe, há décadas, submetida à ditadura da telenovela e ao culto indigente dos "famosos"?

2. Tem de ser assim? Não, não tem — tudo resulta de escolhas. Eis um belíssimo contra-exemplo: esta semana, em França, a Télérama, uma genuína publicação popular sobre televisão, destaca nada mais nada menos que o génio e, mais especificamente, a "lenda" de Roland Barthes (1915-1980), autor de livros como Mitologias e O Prazer do Texto. O pretexto são as comemorações do centenário de Barthes, em particular uma exposição na Biblioteca Nacional e a edição de uma monumental biografia assinada por Tiphaine Samoyault.

3. Não é uma questão de quotas, entenda-se. Não se trata de dizer que deve haver um número x ou y de capas sobre estes ou aqueles "temas". É uma questão de opções, justamente — há formas de cultura popular, ou melhor, modelos populares de cultura que não desistiram da pluralidade do mundo e, sobretudo, prezam a inteligência dos leitores, espectadores & cidadãos. 

Memória de Maria Nobre Franco

A notícia da morte de Maria Nobre Franco [DN] arrasta essa ilusão cruel com que observamos os que nos são queridos: ela era uma daquelas pessoas votadas à eternidade e, mesmo através de longas ausências, esperávamos sempre voltar a vê-la num encontro marcado ou apenas, algures, nos ziguezagues a que a agitação diária nos compele.
Não posso dizer que a conheci intimamente, nem tenho a pretensão de evocar aqui em pormenor a sua dedicação às artes, sua defesa e promoção, primeiro como fundadora e directora da Galeria Valentim de Carvalho, depois na direcção do Sintra Museu de Arte Moderna - Coleção Berardo. Conhecia-a através do Fernando Lopes que, com a objectividade que o distinguia, me explicava que a Maria pertencia, por direito próprio, à história do cinema português das décadas de 1960/70 e que, sem ela, nunca teria feito o seu filme Uma Abelha na Chuva (1972). E não esqueço que, amavelmente, acedeu a registar uma breve conversa comigo, no âmbito do trabalho para um filme sobre o Fernando.
Retenho, sobretudo, a sua alegria de ver e pensar. E o modo como daí emanava uma admirável capacidade de escuta, raridade sempre tocante e enriquecedora. Era uma daquelas pessoas que nos ajuda a olhar o mundo à nossa volta, ensinando-nos a não desesperarmos demasiado dos outros e também, talvez sobretudo, de nós próprios — sei que não a vou esquecer.

Cannes 2015 [Amy]

Não se pode dizer que o documentário Amy, sobre Amy Winehouse, seja um objecto de grandes revelações, muito menos de exaltação do escândalo. O mais impressionante no minucioso trabalho de Asif Kapadia é o facto de ele, em boa verdade, lidar com muitos materiais comuns ao jornalismo que usa e abusa da privacidade daqueles que "noticia". Ora, como se prova, nenhuma matéria informativa possui um sentido único que retire responsabilidade a quem a manipula. No caso de Amy, a reunião de uma incrível variedade de materiais — filmes de família, fotos, registos de concertos, etc. — é feita no sentido de celebrar a dramática pluralidade da pessoa retratada. Ou como a vida de uma das maiores cantoras das últimas décadas, herdeira legítima de Sarah Vaughan, foi escandalosamente breve.

terça-feira, maio 19, 2015

"Alphaville" faz 50 anos

Eddie Constantine + Anna Karina
Nos filmes cinquentenários do ano corrente, Alphaville, de Jean-Luc Godard, constitui um caso à parte: uma ficção científica feita a partir de linguagens do realismo a preto e branco — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Maio), com o título 'Meio século de memórias de Alphaville'.

Um lugar-comum muito popular insiste em proclamar que os críticos de cinema não gostam de filmes “de efeitos especiais”... Não valerá a pena gastar muito tempo com a sua desmontagem: os efeitos especiais não definem nenhum género específico e, além do mais, a sua associação a filmes de super-heróis das últimas duas décadas decorre de uma profunda ignorância histórica, quanto mais não seja porque, graças a Georges Méliès, a prática dos efeitos especiais tem mais de um século.
A própria consideração dos efeitos especiais como “geradores” de fantástico é ainda mais simplista. De facto, nenhuma nave espacial a atravessar o ecrã nem nenhum corpo digital mais ou menos monstruoso garantem qualquer “transcendência” narrativa.
Vem, por isso, a propósito citar um filme fascinante que aposta na criação de um ambiente fantástico a partir de técnicas tradicionalmente associadas ao mais estrito realismo. Está a passar meio século sobre o seu lançamento: Alphaville (1965), de Jean-Luc Godard, é esse filme que nos projecta numa sociedade futura, com um sistema de controle dos cidadãos que, agora, seremos levados a classificar de ditadura mediática [Criterion].
JLG
Um dado essencial na concepção formal do filme foi mesmo a ausência de efeitos especiais. Dito de outro modo: a criação desse mundo futurista decorre de uma opção eminentemente realista. Como? Godard impôs ao seu director de fotografia, o genial Raoul Coutard, que filmasse sem iluminação complementar, quer dizer, tirando partido apenas das fontes de luz que existiam em cada cenário, exterior ou interior.
Havia uma razão técnica muito particular para o desafio de Godard. Assim, estavam a ser generalizadas películas a preto e branco cada vez mais sensíveis, permitindo registos (fotográficos e cinematográficos) em ambientes de fraca intensidade luminosa. A aposta consistiu em testar até ao limite as possibilidades dessas películas que permitiam até filmar dois rostos a partir do acender de um fósforo (coisa que, no filme, acontece mesmo).
Com Eddie Constantine no papel de Lemmy Caution, o agente do FBI criado pelo escritor Peter Cheyney, Alphaville evolui como um desconcertante filme “noir”. Por um lado, todos os ambientes são típicos de um período de acentuada renovação arquitectónica da cidade de Paris (também reflectido na obra-prima de Jacques Tati, Playtime, lançada dois anos mais tarde); por outro lado, a densidade e os contrastes das imagens geram uma sensação de ambígua proximidade carnal, sem que a história perca a sua dimensão de ficção científica.
No centro de tudo isto está Anna Karina, interpretando Natacha von Braun, uma mulher que ignora as significações da palavra “amor” e que Godard, em alguns planos que ganharam valor iconográfico, mostra a ler o livro de poemas Capitale de la Douleur, do surrealista Paul Éluard. Em última instância, Alphaville não é sobre o futuro, antes celebra os poderes intemporais da poesia. Não poderia ser mais especial.