sexta-feira, fevereiro 13, 2015

Quinquin, televisão e cinema (1/2)

O Pequeno Quinquin, de Bruno Dumont, é uma maravilhosa proeza, de uma só vez televisiva e cinematográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Fevereiro), com o título 'O Pequeno Quinquin desafia as tradições dos heróis infantis'.

Quando o filme O Pequeno Quinquin passou em Cannes, na edição de 2014 da Quinzena dos Realizadores, o evento surgiu marcado por uma ambivalência que todos elogiaram. Estava-se perante um produto híbrido, típico da pluralidade que o audiovisual pode envolver: uma mini-série de televisão, com chancela do canal franco-alemão Arte, que existe também como longa-metragem para as salas de cinema.
Em entrevista dada ao serviço de imprensa da Quinzena, o realizador Bruno Dumont contrariava a ideia corrente segundo a qual o trabalho em televisão implica uma inevitável redução das hipóteses criativas. Sublinhando que a produção do Arte lhe dera “carta branca”, Dumont recordava que o seduziu a exploração de um modelo de narrativa que “não conhecia bem” e que, afinal, lhe parece “menos académico que o cinema”.
Bruno Dumont
Mesmo reconhecendo que Dumont fez um trabalho de grande originalidade, talvez se possa dizer que há dois modelos tradicionais do cinema francês que, simbolicamente, ecoam em O Pequeno Quinquin. O primeiro tem a ver com o gosto de representação das personagens do campo ou, genericamente, das classes populares, patente, por exemplo, nos filmes protagonizados por Fernandel (1903-1971), em particular as comédias em que interpretou a figura de Dom Camillo (curiosamente, um padre italiano). O segundo envolve as memórias das comédias de actores como Louis de Funès (1914-1983) ou Bourvil (1917-1970), muitas vezes explorando incidentes do quotidiano que vão deslizando para o mais radical absurdo.
Quinquin (Alane Delhaye) é um rapazinho que vive no norte de França, na região de Boulogne-sur-Mer, do departamento de Pas-de-Calais, bem próximo das margens do canal da Mancha. Personagem mais ou menos independente, deambulando pelos campos e ruas de uma pequena povoação marcada pela monotonia das suas rotinas, vai ter umas férias, no mínimo, inesperadas. Isto porque, na companhia da sua “namorada”, Ève (Lucy Caron), com quem dá longos passeios de bicicleta, Quinquin acompanha a agitação das forças policiais. Lideradas pelo bizarro comandante Van der Weyden (Bernard Pruvost), figura de muitos trejeitos físicos e delirantes elucubrações filosóficas, investigam o mistério de uma vaca encontrada num bunker da Segunda Guerra Mundial — quando o animal é autopsiado, descobrem-se no seu ventre os pedaços de um corpo de mulher...
A descrição poderá fazer pensar que se trata de um policial tipicamente francês, à maneira de Georges Simenon, porventura fazendo lembrar também alguns filmes “noirs” de Jean-Pierre Melville. Mas não: o tom adoptado por Bruno Dumont é desconcertantemente burlesco. E tanto mais quanto Quinquin está longe de qualquer modelo corrente de criança — no seu misto de candura e crueldade, pragmatismo e romantismo, ele desafia as tradições dos heróis infantis, impondo-se como uma personagem plena de humor, mesmo quando evolui na fronteira da tragédia.
Para Bruno Dumont, este foi um desvio muito significativo em relação aos seus trabalhos especificamente cinematográficos — recorde-se que o seu filme anterior, Camille Claudel 1915 (2013), com Juliette Binoche, era um drama pungente sobre a lendária escultora, irmã de Paul Claudel. Porventura o maior desafio inerente ao projecto de O Pequeno Quinquin consistiu em trabalhar, não com actores profissionais, antes com pessoas da região sem qualquer experiência de representação. Como o próprio realizador sublinhou, essas pessoas “ocupam com naturalidade o cenário” e dão-lhe a verdade existencial que ele procura.