quinta-feira, janeiro 01, 2015

Três vezes 2014

Não se trata de escolher o melhor dos melhores nem o de fazer uma lista coletiva. Mas todos os anos, em tempo de balanços, costumamos por aqui encontrar um disco, um filme e um livro que traduzam entusiasmos maiores partilhados entre nós e quem nos lê. E estas são as nossas escolhas de 2014:


Angel Olsen, 'Burn Your Fire For no Witness'

N. G.: Não se trata exatamente de uma estreia, mas este foi não só o primeiro álbum que Angel Olsen gravou com uma banda criada para a acompanhar em estúdio e na estrada, como representou também o cartão de visita que a fez presença importante no mapa mundo das atenções musicais de 2014. É um disco em que o presente mostra como pode dar um passo em frente se souber assimilar raízes. Memórias do indie rock, assim como ecos da country e um saber na escrita que se aprende a ouvir (e a ler) os grandes cantautores, fizeram deste disco um ponto de confluência de argumentos que a voz de Angel Olsen tomou como seu, apresentando-os com a confiança de quem sabe o que está a fazer. Há um ano mal a conhecíamos. Hoje é nome na mira de muitas atenções.

J. L.: Nada contra as experimentações mais ou menos futuristas... Mas é sempre bom encontrar alguém que integra memórias de vários passados, neles ancorando as razões do seu presente. Com 27 anos plenos de maturidade, Angel Olsen tem essa capacidade de se assumir como inesperada "trovadora" dos tempos que correm, fazendo do seu canto uma ponderada e subtil arte de contar histórias — tudo isso com um misto de emoção e distanciação que define uma genuína singularidade artística.



'Debaixo da Pele', de Jonathan Glazer

J. L.: Jonathan Glazer é um minimalista, até pela raridade dos seus trabalhos — o seu filme anterior, Birth - O Mistério, em que Nicole Kidman era confrontada com um perturbante enigma transcendental, tinha surgido quase uma década atrás. A aposta de Debaixo da Pele, encenando a "alien" Scarlett Johansson a partir de matrizes formais insolitamente enraizadas na tradição do realismo britânico, conduz o espectador a fascinantes paisagens narrativas em que, para além das sensações que possamos atribuir às personagens, o que mais conta é a concepção do próprio cinema como genuína e irredutível experiência sensorial. Nesta perspectiva, a evocação do nome de Stanley Kubrick, várias vezes suscitada por este filme, justifica-se muito para além de qualquer caução artística: tal como o realizador de 2001, Glazer é um criador que concebe e pratica o cinema como uma caixa de ressonância humana em que a experiência mais física pode coabitar com a vertigem de uma elaborada pulsão metafísica.

N. G.: Já tinha feito telediscos, publicidade e até cinema. Mas foi com Debaixo da Pele que Jonathan Glazer deixou claro que é um dos maiores talentos em afirmação no nosso tempo. Numa altura em que a ficção científica mais vezes pensa em efeitos digitais, velocidades estonteantes na criação de narrativas e no ritmo da montagem, deu-nos precisamente o oposto. Uma história com mais questões que respostas, capaz de sugerir a estranheza alienígena pelas imagens e música e que, como a melhor sci-fi, no fim de tudo não fala senão de nós mesmos. Belíssima interpretação de Scarlett Johansson, num filme que define o seu tom, o seu ritmo, criando uma atmosfera tão peculiar que com nada se parece.



'The Lyrics: Since 1962', de Bob Dylan

N. G.: Quando me perguntam quem merecia ganhar o Nobel da Literatura, gosto sempre de responder um destes dois nomes: Leonard Cohen ou Bob Dylan. Se do primeiro tivemos este um álbum de originais que deu conta de uma espantosa vitalidade aos 80 anos, do segundo estamos em contagem decrescente para a edição de um álbum onde vai interpretar canções imortalizadas na voz de Frank Sinatra (e que sucede a uma espantosa edição de material de arquivo que nos revelou o grande tesouro registado em 1967 como 'Basement Tapes'). Para justificar o porquê do gosto em ver Dylan distinguido pela sua escrita poderíamos passar pelas Crónicas, já editadas em livro. Mas 2014 juntou mais um dado: uma edição antológica das letras (poemas) das suas canções desde o início da sua carreira. Será que é desta que reparam que há ali quem mereça a mais alta distinção da literatura?

J. L.: De Tony Bennett a Bruce Springsteen, são muitos os que têm estado a (re)organizar o seu passado, através de edições mais ou menos antológicas. Escusado será dizer que a publicação dos poemas de Bob Dylan envolve uma dimensão suplementar que talvez possamos definir através de um misto de absurdo e ironia: mesmo que ele nunca tivesse pegado numa guitarra para os cantar, a sua simples existência bastaria para o definir como um admirável homem das letras — o livro pesa 6 quilos, pormenor cujo simbolismo está longe de ser irrelevante.