Alguns filmes importantes continuam a ser difundidos (por vezes esquecidos...) através de lançamentos directamente em DVD: é o caso de The Canyons (entre nós intitulado Vale do Pecado), de Paul Schrader, escrito por Bret Easton Ellis — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Dezembro), com o título 'Nas margens de Hollywood e também do mercado do DVD'.
Tal como muitos outros domínios ligados à produção cinematográfica, também o mercado do DVD viveu o ano de 2014 recoberto pela palavra “crise”. A pluralidade da oferta, tanto na televisão por cabo como na Internet (sem esquecer os prejuízos financeiros e culturais decorrentes das práticas ilegais de download), trouxe alguma desvalorização simbólica ao DVD. Ainda assim, há que dizer que foi um ano de muitas e variadas edições, muito para além da mera repetição dos ciclos de exibição nas salas.
Paul Schrader |
No domínio dos clássicos, o ano foi riquíssimo, nalguns casos confirmando uma prática que tem o mérito de articular, precisamente, a programação das salas com os circuitos do DVD. Obras de autores clássicos como Yasujiro Ozu, Ingmar Bergman ou Charles Chaplin puderam ser redescobertas em sala e, depois, vistas ou revistas em DVD — para mais, em cópias restauradas, ilustrando a importância crescente da digitalização de títulos “antigos”.
Quanto aos inéditos (“directo para vídeo”, segundo a tradicional e castigadora expressão), talvez seja oportuno relembrar que, globalmente, o mercado está longe de possui uma estratégia coerente para gerir a sua variedade. Desde logo, porque há muitos títulos que chegam às salas sem que se vislumbre qualquer pertinência comercial (muito menos artística) na sua exibição por breves dias. Depois, porque há filmes de autores importantes (não poucas vezes com potencialidades comerciais) que não vemos, nem sequer através da “compensação” do DVD. Entre os exemplos possíveis, lembremos apenas um, sintomático: Les Témoins (2007), de André Téchiné, por certo um dos filmes mais subtis que já se fizeram sobre os anos de descoberta da epidemia da sida, nunca chegou aos circuitos portugueses.
Neste contexto, a edição em DVD de Vale do Pecado (2013), de Paul Schrader, pode servir de emblema insólito dos filmes realmente invulgares que não chegaram às salas em 2014, tendo um tratamento rotineiro no mercado do DVD (a respectiva capa nem sequer refere o facto de se tratar de um inédito).
Não estamos perante um objecto banal. A começar pelo facto de Schrader, argumentista de alguns títulos fulcrais de Martin Scorsese, incluindo Taxi Driver (1976), e A Última Tentação de Cristo (1988), ser também um autor emblemático das últimas décadas do cinema americano, tendo assinado obras tão singulares como American Gigolo (1980), A Felina (1982) ou Mishima (1985). Mais do que isso: Vale do Pecado é, por certo, uma das mais cruas e desencantadas visões que já se fizeram sobre algumas personagens da produção cinematográfica em Hollywood, sendo inevitável aproximá-lo da frieza do olhar de David Cronenberg, sobre outras zonas dessa produção, no recentemente estreado Mapas para as Estrelas.
Há em Vale do Pecado (o título original, The Canyons, limita-se a identificar um zona residencial dos arredores de Los Angeles) uma espécie de silencioso ajuste de contas de Schrader com uma indústria que, de facto, em anos recentes, não lhe tem facilitado a vida — o seu título mais recente, Dying of the Light, um “thriller” com Nicolas Cage (com estreia portuguesa marcada para 8 de Janeiro), foi remontado pelo estúdio produtor e Schrader já o renegou publicamente. Ao escolher para protagonistas Lindsay Lohan (a menina dos filmes Disney que, entretanto, caiu em desgraça mediática) e James Deen (com dois “ee”, uma estrela do cinema pornográfico), Schrader está claramente a sinalizar o seu trabalho como marginal, relatando a história da fabricação de um filme de “série Z” como um suave apocalipse de degradação moral e sexual em que, definitivamente, já não há lugar para qualquer tipo de redenção.
Além do mais, Vale do Pecado é um caso modelar de escrita para cinema. Com argumento de Bret Easton Ellis, autor desse romance incontornável que é American Psycho (adaptado ao cinema, em 2000, por Mary Harron), o filme possui a energia de um metódico retrato realista, transfigurado em perturbante tragédia moral. Tudo isso em directo para DVD...