sábado, janeiro 10, 2015

Madonna nas malhas da Net (2/2)

MADONNA / Instagram
As peripécias digitais em torno do álbum Rebel Heart, de Madonna, são sintoma de um perverso contexto tecnológico em que a "transparência" da Net favorece uma sistemática agressividade contra qualquer identidade artística — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Dezembro), com o título 'História com seis canções'.

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A pirataria contra Rebel Heart, o novo álbum de Madonna, corre o risco de se tornar um case study da cultura popular no séc. XXI. E tanto mais quanto aquela que sempre foi reconhecida como uma das mais inteligentes e sofisticadas habitantes do mundo da “comunicação global”, tem estado a ser alvo de um populismo digital a que, com mais ou menos ironia, não podemos deixar de reconhecer uma viragem do feitiço contra o feiticeiro.
Como sempre, a agitação de algumas notícias em torno das celebridades possui um efeito cruel: reduz essas celebridades a marionetas (noticiosas, precisamente) sobre as quais não haverá mais nada para dizer a não ser a reiteração de um qualquer “conceito” mais ou menos estereotipado. E já nem falo do facto de, através da fundação Raising Malawi, Madonna continuar a gerir programas de apoio aos órfãos da sida naquela país africano, tendo recentemente lançado o projecto de um hospital pediátrico. Acontece que, num processo mediático deste género, a sua matéria fulcral — entenda-se: a música — tende a ser perversamente secundarizada.
Entre as seis canções já divulgadas há coisas realmente brilhantes, incluindo o descarnado conto moral que é Devil Pray [audio], além do mais um tema que actualiza a hipótese de um intimismo religioso radicalmente humanista, paradoxalmente individualista (que passa por referências centrais da obra de Madonna como Like a Prayer, Sky Fits Heaven ou I’m a Sinner). Isto sem esquecermos as admiráveis fotografias de Mert Alas & Marcus Piggott, uma das quais (deitada com uma camisola vermelha) retoma a pose do cartaz oficial do filme Na Cama com Madonna (1991) que, por sua vez, se inspirava numa das imagens da “última sessão” de Marilyn Monroe, assinada por Bert Stern. A história repete-se, mas é sempre diferente.