Para Jean-Luc Godard, o mundo em que vivemos tem SMS a mais e comunicação a menos: o seu filme Adeus à Linguagem é um produto directo dessa tragédia das imagens e dos sons — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 janeiro), com o título 'O pintor, o cineasta, a sua televisão e o fantasma dela'.
Quando o seu filme Adeus à Linguagem passou no Festival de Cannes, Jean-Luc Godard deu uma entrevista a uma cadeia de televisão em que, ele próprio, questionava a entrevistadora sobre o significado da sigla “SMS”. Perante a sua hesitação, perguntava-lhe como é possível enviar SMS todos os dias e não saber o que significa a respectiva designação. Talvez algo como short message (“mensagem breve”), sugeria ele... Mas logo a seguir Godard avançava com uma outra interpretação: SMS quer dizer save my soul, ou seja, à letra, “salva a minha alma”. E acrescentava: “As pessoas enviam SMS como se enviavam SOS, porque estão sós e querem estar com alguém”.
Há neste pequeno conto moral uma marca reveladora do criador de títulos tão emblemáticos como O Desprezo (1963), Tudo Vai Bem (1972) ou Eu Vos Saúdo Maria (1985). Dir-se-ia que Godard é também o cineasta que faz filmes como quem envia mensagens que possam contrariar a sua solidão criativa. Não por evitar estabelecer relações com os outros; antes porque não abdica de formular a pergunta mais humana, porventura também mais cruel: afinal, quando filmamos, que relação estabelecemos, ou podemos estabelecer, com o espectador?
Adeus à Linguagem utiliza a técnica, agora muito da moda, das imagens a três dimensões. Daí que essa questão da possibilidade de uma relação com o espectador comum (se é que ainda existe uma comunidade de espectadores...) surja formulada através de uma perplexidade que o próprio Godard já enunciara no filme 3x3D (2012). A saber: para quê tentar impor ao ecrã de uma sala de cinema — que sabemos ser uma superfície plana — um efeito tridimensional que parece estranho à sua própria realidade física?
A pergunta está longe de ser abstracta. Aliás, a esse propósito, importa discutir a classificação de Godard como um eremita que se dedica a experiências fechadas, mais ou menos formalistas. É verdade que o seu cinema nunca abdicou de “teorizar” sobre modos alternativos de contar histórias através dos filmes. Mas não é menos verdade que sempre o fez através de aproximações muito directas de temas fulcrais de actualidade: por exemplo, os novos bairros suburbanos em Duas ou Três Coisas sobre Ela (1966), o desmembramento da família tradicional em Salve-se quem Puder (1979), as marcas políticas da guerra da Bósnia em Para Sempre Mozart (1996), etc.