quarta-feira, dezembro 10, 2014

Jim Carrey + Jeff Daniels

Graças à dupla Jim Carrey/Jeff Daniels, podemos ter a certeza de que a comédia made in USA existe... e resiste — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Dezembro), com o título 'A tradição burlesca está viva com Jim Carrey e Jeff Daniels'.

Através de muitos títulos medíocres, directa ou indirectamente “inspirados” nos modelos de Porky’s, Academia de Polícia ou American Pie, a comédia americana tem vivido tempos difíceis. Para além das opções de produção que sustentaram tais títulos, importa sublinhar a sua primeira e decisiva fraqueza conceptual: na sua esmagadora maioria, os filmes menosprezavam o trabalho de composição dos actores, reduzindo o efeito cómico a uma banal colecção de anedotas obscenas e muito previsíveis. Face a Doidos à Solta de Novo, dos irmãos Bobby e Peter Farrelly, o menos que se pode dizer é que, desta vez, os actores constituem o decisivo material humano. E não estamos a falar de actores banais.
Jim Carrey, além de ser um dos mais legítimos herdeiros (porventura o único) de uma tradição burlesca que vem de Charles Chaplin e Buster Keaton, desembocando em Jerry Lewis, é também um dos mais versáteis intérpretes do cinema americano contemporâneo, tendo-o demonstrado através de notáveis composições dramáticas em filmes como A Vida em Directo (Peter Weir, 1998), Homem na Lua (Milos Forman, 1999), The Majestic (Frank Darabont, 2001) ou O Despertar da Mente (Michel Gondry, 2004).
Por sua vez, os contrastes da carreira de Jeff Daniels são eloquentes. Podemos vê-lo, por exemplo, a assumir os dramáticos altos e baixos de um pivot televisivo na brilhante série de Aaron Sorkin, The Newsroom (a passar no canal TV Séries), ao mesmo tempo descobrindo-o aqui, contracenando com Carrey, na complexa e sofisticada arte do timing cómico. Isto sem esquecer, claro, que a sua carreira passa por títulos magníficos como A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen, 1985), Pleasantville (Gary Ross, 1998) ou Boa Noite, e Boa Sorte (George Clooney, 2005).
Assumindo a distância em relação ao original Doidos à Solta (parecendo que não, já passaram vinte anos...), os realizadores relançam os seus desastrados heróis — Lloyd Christmas (Carrey) e Harry Dunne (Daniels) — precisamente a partir dessa passagem do tempo. A sua nova odisseia, motivada pelo facto de Dunne necessitar do transplante de um rim, vai funcionar como uma viagem de sucessivos reencontros com o passado, num registo que acentua, afinal, a dimensão moral que qualquer comédia que se preze deve cultivar: a amizade dos protagonistas, sujeita a permanentes (e divertidos) testes, é sempre mais forte que as atribulações familiares ou os conflitos sociais.
Além do mais, num cinema com tantas sequelas instaladas na repetição preguiçosa de fórmulas esgotadas, Doidos à Solta de Novo é a prova real de que é possível recuperar um modelo, reinventando-o. Sugere-se mesmo ao espectador que não perca as derradeiras imagens do filme, uma vez que, depois do genérico final, há notícias sobre a próxima sequela...