domingo, outubro 12, 2014

O regresso ao mono dos Beatles (parte 2)


Este texto é parte de um artigo originalmente publicado no suplemento Q., do DN, com o título 'Em busca de autenticidade na memória dos Beatles' e apresenta a caixa que junta, em novas edições em vinil, a obra em ‘mono’ que o grupo registou entre 1962 e 1969.

Quando, em 1963, os Beatles deixaram as gravações em duas pistas e passaram a registar em quatro, as misturas ganharam aos poucos potenciais novos patamares de complexidade e as diferenças entre as versões mono e estéreo puderam aumentar significativamente. Mesmo assim, e como recorda Kevin Howlett no ensaio que abre o booklet da caixa The Beatles in Mono, “até em 1967, quando estavam no momento maior da sua experimentação em estúdio, a mistura em mono de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band era sua prioridade absoluta”. Os quatro estavam presentes na mistura em mono, muitas vezes levando acetatos de teste para casa que, depois de escutados, sugeriam alterações a fazer no dia seguinte. Terminada a mistura em mono deixaram, como relata Howlett, as versões em estéreo nas mãos de George Martin e dos seus engenheiros de som. Vivia-se mesmo assim um período de transição, e até à edição da banda sonora de Yellow Submarine (1969) os Beatles ainda editaram todos os seus discos tanto em mono como estéreo.

Lançado em inícios de 1963, o álbum de estreia Please Please Me chegou numa altura em que, ainda dominado pelo single (e também pelo EP, ou seja, o Extended Play, que podia juntar duas faixas de cada lado num disco com as dimensões de um single), o mercado da música pop/rock começava a refletir uma cada vez mais evidente valorização do formato do álbum. O primeiro álbum dos Beatles vendeu meio milhão de unidades, na sua esmagadora maioria em mono. Os álbuns em estéreo, lembra Kevin Howlett, eram então “editados em pequenas quantidades para um mercado de entusiastas do hi-fi”. Poucos meses depois, o segundo álbum, With the Beatles, pulverizava os números do álbum de estreia, acabando dois anos depois por representar o primeiro disco a ultrapassar a fasquia do milhão no Reino Unido (ainda hoje é o terceiro disco com maior volume de vendas dos Beatles, superado apenas por Sgt. Pepper’s e Abbey Road).

Um exemplo curioso do peso das diferentes misturas na obra dos Beatles pode encontrar-se no facto de a versão mono de A Hard Day’s Night (1964) ter exigido cerca de três vezes mais tempo que a versão em estéreo desse mesmo disco que, então, incluía as canções do primeiro filme com os fab four.

Depois de Beatles for Sale (de 1964) e de Help! (1965, com as canções de um segundo filme) coube a Rubber Soul (1965) a expressão de novos patamares de labor no trabalho em estúdio, o que se revela nas diferenças que encontramos entre as versões mono e estéreo. Curiosamente as misturas de seis das canções na versão estereofónica foram realizadas na mesma manhã em que Isabel II entregava aos Beatles as insígnias MBE (Members of the British Empire), facto que reforça como não era ali que estava o gume da atenção dos músicos. Revolver (1966) leva contudo os desafios de experimentação mais além, e para os quais terá certamente contribuído a presença de Geoff Emerick, um jovem engenheiro de som com 20 anos que George Martin chamou a estúdio. O grupo concentrava então os esforços criativos e preparava-se para deixar os palcos, abrindo espaço para experiências ainda mais elaboradas em Abbey Road que surgiriam com Sgt. Pepper’s e Magical Mistery Tour, ambos de 1967. O segundo, originalmente editado como duplo EP no Reino Unido, surgiu nos EUA como álbum (juntando temas de singles da época no lado B), gerando assim aquela que é a única edição não britânica a figurar naquela que, com o tempo, acabou definida como a discografia canónica dos Beatles em LP.

A nova caixa em vinil The Beatles in Mono junta todas as versões mono destes álbuns a The Beatles (o álbum branco), disco de 1968 nascido segundo um desafio de simplificação instrumental. E inclui ainda – além de um extenso booklet com textos (álbum a álbum), recortes de imprensa e imagens da época – a compilação The Mono Masters, que integra os temas que foram editados em single e ainda elementos da banda sonora de Yellow Submarine. Além das naturais diferenças na forma como os sons estão distribuídos em mono ou estéreo, há diferenças nos discos, e algumas decorrem do facto de terem sido escolhidos takes diferentes. Há versões mais lentas, fades que surgem com outra rapidez, até mesmo detalhes nas performances vocais e instrumentais. O ‘Álbum Branco’, por exemplo, é um minuto mais curto na versão mono... Além disso, a nitidez com que os arranjos dos discos de 1966 e 67 se arrumam nas misturas em mono revelam um espantoso e cuidado trabalho técnico que valoriza canções de uma etapa em que o grupo soube aliar a criatividade à exploração da tecnologia ao seu alcance.

Esta caixa, que representa assim a experiência mais próxima possível do que era, há 50 anos, descobrir a música dos Beatles, surge na sequência de mais dois importantes lançamentos oficiais de arquivo apresentados já este ano. Uma das caixas, com o título U.S. Box, recupera em CD os LP dos Beatles, com capas e alinhamentos diferentes, que a Capitol criou para o mercado norte-americano. A segunda, a Japan Box, junta os álbuns, também diferentes, que a EMI japonesa lançou entre 1964 e 65. Há contudo ainda muito material de arquivo a recuperar...