SIX FOIS DEUX (1976), de Jean-Luc Godard |
O espaço televisivo português é um triste exemplo de falta de diversidade, desde logo no domínio da ficção: onde está um pensamento político capaz de enfrentar esta tragédia cultural? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Outubro).
Enquanto o país continua a ser massacrado pela desvergonha da Casa dos Segredos — devidamente “sancionada” pelo silêncio de uma classe política que se demitiu da reflexão sobre a degradação dos padrões da cultura popular —, há acontecimentos realmente importantes na área da televisão. E, em particular, no domínio das relações entre espaço televisivo e produção cinematográfica.
Desde logo, através de um exemplo português: o filme Os Maias, de João Botelho, é o testemunho vivo da possibilidade de conceber um objecto audiovisual versátil — a adaptação de Eça de Queiroz será transmitida em formato de série, em 2015, na RTP — sem que isso implique qualquer cedência aos padrões dominantes de telenovelas e afins.
Surgiram também nas salas as duas partes de Heimat – Crónica de uma Nostalgia, mini-série cinematográfica com que Edgar Reitz prolonga a sua visão da história alemã: depois da primeira série Heimat (iniciada em 1984 e produzida ao longo de duas décadas), sobre o séc. XX, a nova produção recua a meados do séc. XIX, perscrutando as raízes rurais das suas personagens.
A conjuntura é tanto mais motivadora quanto, no âmbito do relançamento de dezassete filmes de Ingmar Bergman em cópias restauradas, surgiu em DVD Cenas da Vida Conjugal (1973), precisamente um título pioneiro de um entendimento da relação cinema/televisão que aposta nas potencialidades de cada um dos meios, sem menosprezar as respectivas especificidades. Espantosa viagem através das ilusões, silêncios e traumas de um casamento, Cenas da Vida Conjugal existe numa versão televisiva de 281 minutos, tendo sido remontado para as salas de cinema com 167 minutos (sendo esta a versão lançada em DVD).
O filme/série de Bergman, produzido há mais de quarenta anos, serve de amostragem de uma ideia essencial, regularmente mascarada pelo cinismo de alguns discursos televisivos: as possibilidades de uma inteligente e frutuosa interacção cinema/televisão não são uma “novidade” inventada pelos críticos, mas sim um dado de pensamento e acção há muito presente no audiovisual.
Roberto Rosselini foi um dos primeiros a conceber e valorizar as opções artísticas e pedagógicas de tal interacção — importa não esquecer que o seu admirável (tele)filme A Tomada do Poder por Luís XIV tem data de 1966. Lembremos também Jean-Luc Godard, autor da série Six Fois Deux, Sur et Sous la Communication em 1976, ou Michelangelo Antonioni que dirigiu a produção televisiva O Mistério de Oberwald em 1981.
Quando deparamos com o espaço televisivo português, não apenas minado pelos horrores da “reality TV”, mas também saturado de infinitas horas de telenovelas, o menos que se pode dizer é que as nossas coordenadas culturais foram obrigadas a recuar várias décadas... Onde está um politico com coragem e lucidez para falar desta hecatombe?