Gillian Flynn adaptou o seu romance Em Parte Incerta/Gone Girl para uma realização de David Fincher. Os resultados devolvem ao thriller a sua sofisticação clássica — este texto integrava um dossier sobre o filme, publicado no Diário de Notícias (2 Outubro).
O menos que se pode dizer do novo filme de David Fincher, Em Parte Incerta, é que não saber da sua existência será, por esta altura, uma proeza só ao alcance de um marciano acabado de desembarcar no planeta Terra — e, mesmo assim, dos mais distraídos... De facto, há muito que se não via, mesmo no interior da máquina de Hollywood, um título lançado com uma tão grandiosa e sofisticada campanha.
Curiosamente, o primeiro sinal dessa campanha foi um registo fotográfico: no passado dia 17 de Janeiro, a revista Entertainment Weekly dava capa ao projecto do filme (título original: Gone Girl), com uma imagem dos respectivos protagonistas, Rosamund Pike e Ben Affleck. A fotografia, assinada pelo próprio Fincher, não sendo uma cena do filme, sugeria, com calculada perversidade, o seu mistério central. A saber: o casal, Amy e Nick, surgia numa mesa de uma morgue, com o marido a abraçar o cadáver da mulher...
De facto, desde a notícia da adaptação do romance homónimo de Gillian Flynn (já lançado entre nós, com chancela da Bertrand Editora), Fincher tinha sido bombardeado com o cepticismo dos muitos fãs do livro (que liderou, durante oito semanas, a lista de “best-sellers” do New York Times) e as dúvidas de alguma imprensa. A estrutura do romance seria mantida? E tendo em conta que a adaptação cinematográfica iria ser da responsabilidade da própria escritora, o desenlace seria alterado ou não? Enfim, o menos que se pode dizer é aquilo que já estava subjacente à capa da Entertainment Weekly: com o desaparecimento da personagem de Amy, o marido emerge como principal suspeito...
David Fincher |
As especulações em torno das peripécias de Em Parte Incerta levaram mesmo à organização de algumas projecções de imprensa em que foi solicitado aos jornalistas convidados a assinatura de um compromisso de embargo até à data da passagem do filme no Festival de Nova Iorque (26 Setembro). Enfim, vale a pena lembrar que semelhante protecção informativa, com toda a carga de sedução que pode gerar, está longe de ser uma novidade. Lembremos, por exemplo, a inteligente campanha que Alfred Hitchcock montou em torno do seu Psico, já lá vão mais de quarenta anos (foi em 1960 e havia mesmo um cartaz em que o próprio Hitchcock surgia a apontar para o seu relógio de pulso, com uma legenda que garantia que “ninguém” seria autorizado a entrar na sala depois do começo da projecção).
Se é verdade que Fincher tem experimentado os registos mais diversos — incluindo o puro terror, com Alien 3 (1992), a sua primeira longa-metragem —, não é menos verdade que o thriller policial e os mecanismos de suspense não são estranhos ao seu trabalho. Por vezes com elaboradas ressonâncias bíblicas, como no caso de Seven – 7 Pecados Mortais (1995). Outras vezes explorando a memória de crimes que fazem parte do imaginário americano, como em Zodiac (2007).
Em Parte Incerta nasce do cruzamento de duas vertentes, uma romanesca, outra sociológica. Assim, por um lado, a progressiva revelação dos bastidores da vida de Amy e Nick funciona como cruel desmontagem das ilusões de um casamento “exemplar”, sancionado pelas famílias e respectivas comunidades; por outro lado, ao expor a manipulação do desaparecimento de Amy pelo mais desenfreado populismo televisivo, Fincher deixa um testemunho radicalmente céptico sobre as nossas sociedades mediáticas. Fica, além do mais, um novo enigma: há quem acredite, desde já, que Ben Affleck e, sobretudo, Rosamund Pike são sérios candidatos aos próximos Óscares de interpretação.