quinta-feira, outubro 02, 2014

A tragédia dos nossos ecrãs

NOME: CARMEN (1983)
Porque é que é tão escassa a interrogação (política e cultural) dos horrores quotidianos da Casa dos Segredos? Porque se fala e pensa tão pouco sobre algo que (politicamente, culturalmente) afecta todo o nosso quotidiano comunicacional? Este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Setembro), com o títulos 'Os ecrãs da "Casa dos Segredos"'.

Uma das vias mais sugestivas, e também mais paradoxais, para contar a história do cinema nos últimos quarenta anos, passa pelo reconhecimento de um fenómeno hoje em dia avassalador: a proliferação de ecrãs. É uma via necessariamente ambivalente, já que através dela começámos por compreender o crescente poder de uma entidade chamada... televisão.
Sempre à frente do seu tempo, Jean-Luc Godard foi pioneiro dessa compreensão através de um filme de 1975 intitulado Número Dois (como ele disse na altura, sinalizando as coordenadas de uma nova era, tratava-se do seu “segundo primeiro filme”). Depois, de Salve-se Quem Puder (1980) [trailer] ao recente Adeus à Linguagem (2014), integrando inusitadas imagens de telemóvel (estreia portuguesa: 23 de Outubro), passando por Nome: Carmen (1983), Godard tem-nos ajudado a lidar com uma suave angústia: quanto mais ecrãs nos oferecem, menos exigência colocamos no olhar e, no limite, vemos cada vez menos.


Um dos exemplos mais radicais — e também mais agressivos — de tal cegueira existencial passou a ser a “reality TV”, actualmente relançada no nosso país através dessa democracia dos horrores que dá pelo nome elegíaco de Casa dos Segredos (TVI). Dela emana uma terrível lógica de entorpecimento. Aliás, importa reconhecer que, desde a estreia do Big Brother, produtores, programadores e promotores da reality TV têm sabido manipular o tecido mediático de forma tão hábil quanto demagógica. Criando a ilusão de que está em jogo a amostragem de situações cada vez mais “escandalosas” (sobretudo através da promoção de um tristíssimo machismo sexual), têm conseguido repelir a análise do essencial. A saber: o efeito muito real dos seus programas na percepção da própria televisão como facto social.
Na verdade, o conceito de comércio televisivo que triunfa na Casa dos Segredos não tem nenhuma ideia “escandalosa” — o “escândalo” é tão só um gadget de marketing, vazio e instrumental. O sistema narrativo imposto aos olhares dos espectadores consiste em criar momentos “exóticos”, desligados de qualquer elaboração de um qualquer ponto de vista, multiplicando a vulgaridade do pitoresco (há dias, as câmaras fixavam-se longamente nos gestos de um homem que massajava os pés de uma mulher...). O objectivo, brutal e inane, é apenas um: gerar um olhar de pura indiferença.
O verdadeiro escândalo (escândalo de poder, entenda-se) é esse: a injecção quotidiana, em todo o tecido social, de avalanchas de indiferença, de tal modo que a contemplação das imagens produza um bocejo de pueril gratificação. Fenómenos como a Casa dos Segredos massacram, dia após dia, qualquer entendimento minimamente inteligente do trabalho com as imagens. Mais do que isso: escamoteiam o facto de um ecrã (televisivo, cinematográfico ou de telemóvel) ser sempre um instrumento de conhecimento cujo funcionamento importa compreender e interrogar.