Madhabi Mukherjee CHARULATA (1964) |
As reposições em cópias novas de grandes clássicos da história do cinema continuam, felizmente, a marcar presença no mercado português: agora é a vez do mestre indiano Satyajit Ray (1921-1992) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Setembro), com o título 'À redescoberta de um clássico da Índia'.
Subitamente, o nome de Satyajit Ray — através da reposição de seis títulos da sua filmografia — está na actualidade do mercado português (desde o dia 25, em Lisboa, no Espaço Nimas). É uma oportunidade de redescoberta de um mestre do cinema indiano que, em boa verdade, as gerações mais jovens não têm tido muitas oportunidades de conhecer.
Por cruel ironia, a sua maior visibilidade pública ocorreu poucas semanas antes do seu falecimento. Foi a 30 de Março de 1992, quando Ray, doente no seu leito, surgiu na 64ª cerimónia dos Oscars através de uma gravação realizada poucos dias antes, em Calcutá, agradecendo o prémio honorário com que a Academia de Hollywood o distinguiu “pela sua visão profundamente humanitária” [video] — viria a falecer poucas semanas mais tarde, a 23 de Abril, contava 70 anos.
Dos filmes agora repostos em cópias novas, cinco deles correspondem à fase de consolidação do universo do realizador, revelado ao mundo através da célebre “Trilogia de Apu” (1955-59). Os dois mais antigos, A Grande Cidade (1963) e Charulata (1964) serão os mais divulgados (tanto mais que ambos lhe valeram prémios de realização no Festival de Berlim), reflectindo a preocupação em analisar o confronto da pulsão amorosa com os valores tradicionais do espaço familiar, sempre com especialíssima atenção às singularidades da paisagem feminina.
Os títulos que se seguem cronologicamente — O Santo (1965), O Cobarde (1965) e O Herói (1966) — ajudam-nos a perceber que a invulgar delicadeza melodramática do olhar de Ray (especialmente sensível em Charulata) não basta para caracterizar o seu trabalho. Há nele uma versatilidade que, não poucas vezes, o leva a explorar os caminhos da comédia social, no limite desmontando os clichés do cinema do seu próprio país.
O Santo coloca em cena a utilização demagógica da religião, através da personagem quase burlesca de um homem que se faz passar por um ente divino, enquanto O Cobarde e O Herói observam de forma metódica, por vezes cáustica, os bastidores da indústria cinematográfica. O Herói, em particular, reflecte uma temática que está longe de ter perdido actualidade: a percepção íntima de um actor/vedeta, levado a reavaliar a distância que separa o sucesso público das atribulações da vida privada.
O Deus Elefante (1979), realizado logo após O Jogador de Xadrez (1977), um dos maiores sucessos internacionais de Ray, ilustra uma dimensão quase picaresca, indissociável de alguns livros de aventuras que escreveu. Trata-se, aliás, da adaptação de um dos seus romances centrados nas actividades do detective Feluda, dir-se-ia uma espécie de Hercule Poirot “à indiana”. A sua investigação em torno do desaparecimento de uma valiosa estatueta do deus Ganesh tem tanto de comédia de costumes como de fábula social.
Outro mestre asiático, o japonês Akira Kurosawa, proferiu um dia uma frase sobre Ray, mil vezes evocada nos mais diversos contextos: “Não ter visto os filmes de Ray é ter vivido no mundo sem nunca ter visto a lua e o sol”. Celebrando a sua universalidade, poderemos dizer que regressaram às salas portuguesas seis planetas da galáxia de Satyajit Ray.