PABLO PICASSO Nu numa cadeira de braços 1929 |
Que significa o facto de algumas imagens de nus de figuras do entertainment terem sido pirateadas? Será que já não há espaço para reflectirmos para além da dicotomia "inocência/culpa"? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro), com o título 'A nudez que circula na Internet'.
Há qualquer coisa de deprimente na agitação mediática que um corpo nu tende a suscitar. Por um lado, numa simples página da Internet, podemos encontrar mais nus do que aqueles que, há poucas décadas, imaginávamos poder ver em várias encarnações... Por outro lado, somos bombardeados com discursos “jornalísticos” que nos obrigam a viver em permanente alerta vermelho: basta que alguma figura pública exponha cinco austeros centímetros de pele para se gerar um alarido de “escândalo”.
Estou a caricaturar? Talvez, ma non troppo. Repare-se na linguagem de muitas notícias sobre a circulação na Internet de fotografias de nus de várias figuras do entertainment (por exemplo, Jennifer Lawrence e Mary Elisabeth Winstead).
O aparecimento de tais imagens [ler informação da BBC] não pode ser desligado da discussão sobre o direito à privacidade e o papel que as plataformas digitais desempenham (ou não) na defesa desse direito. Por alguma razão, a Apple foi questionada sobre o funcionamento da sua iCloud, precisamente a “nuvem” onde as imagens estavam arquivadas, no pressuposto de que estariam bloqueadas a visitantes não autorizados (a empresa garantiu, entretanto, que não houve qualquer quebra nos seus sistemas de segurança).
Em todo o caso, para além da segurança dos dispositivos digitais, importa discutir o vício normativo, típico de reality show, que contaminou todo o espaço social. Neste caso, empurrando-nos para a pergunta mais primária: “Quem tem a culpa?”. Tão primária que até mesmo o muito sério Le Monde achou por bem (e muito bem) publicar um artigo de Damien Leloup com um título pedagógico: “As vítimas não são culpadas” (5 Set.). Nele se chama a atenção para o facto de assistirmos ao relançamento de um “sexismo moralista” que, tal como em alguns casos de violação, trata as mulheres como “culpadas” das agressões a que são sujeitas.
Assustador é o facto de os moralistas de serviço parecerem exprimir-se para um mundo de carroças e pombos-correio, anterior à invenção do código Morse... Será que ainda não repararam como a proliferação arbitrária de circuitos de difusão (de imagens e não só) gerou uma cultura da irresponsabilidade cujo único valor é a possibilidade compulsiva de multiplicar links? Escrever ou mostrar qualquer coisa monstruosamente estúpida num blog pode mesmo ser suficiente para criar um “famoso” — e, neste caso, sem caricatura, estou apenas a ser liminarmente realista.
Veja-se o filme Her (2013), de Spike Jonze, com Joaquin Phoenix: a relação do protagonista com a voz (feminina) do seu computador não é a criação de um novo conceito de intimidade, mas a dramática perda da sua possibilidade. Em muitos registos, o aparato das “redes sociais” exclui o próprio valor social das relações: o seu único objectivo é a multiplicação arbitrária de links. Com mais ou menos nudez, o que se perdeu foi a noção da singularidade de cada corpo.