segunda-feira, setembro 15, 2014

Eça por Botelho (2/2)

Grande acontecimento cinematográfico: João Botelho refaz Os Maias, de Eça de Queiroz, como um exercício operático em que o fascínio do passado ecoa na crueza do presente — este texto integrou um dossier sobre o filme, publicado no Diário de Notícias (11 Setembro).

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Em alguns momentos de Os Maias — por exemplo, nas cenas de Santa Olávia, nas margens do Douro, com Afonso da Maia (João Perry) —, João Botelho combina as telas pintadas por João Queiroz com elementos reais dos locais de filmagens (um chafariz, o recanto de um jardim). Fascinante paradoxo: por um lado, sentimos a materialidade ancestral de pedras e flores; por outro lado, o declarado artifício do fundo pintado gera um clima de singular coexistência de contrários.
Bertolt Brecht
Apetece evocar a herança de Bertolt Brecht e a sua pedagogia da distanciação: a coabitação cenográfica do mundo “real” e do mundo “encenado” pode contribuir para uma relação com a história vivida (pelas personagens) que não mascare a sua condição de história representada (para o espectador). Resistimos, enfim, a ser submergidos pelo espectáculo.
Em todo o caso, não simplificando a lição “brechtiana”, vale a pena ir um pouco mais além, lembrando que Brecht foi também um intelectual do prazer. A esse propósito, Roland Barthes destacava a sua proposta de “imaginar uma estética baseada até ao fim no prazer do consumidor”. Mais do que isso: ao referir essa “estética do prazer”, Barthes acrescentava também que se trata da proposição de Brecht “que se esquece mais frequentemente” (in O Prazer do Texto, Edições 70, 1974).
Apetece dizer que Botelho não esqueceu. E que o seu cinema, confessando a manipulação que o sustenta, quer estar também ao serviço do prazer do espectador: vogando pelos imponderáveis da metafísica em Filme do Desassossego (2010), descendo à terra do romanesco, em Os Maias. Num tempo em que a televisão alimenta a ilusão da gratificação instantânea, encontramos aqui a duração, a espera e até o vazio que o prazer pode envolver. Há revoluções que começam por menos.