domingo, setembro 07, 2014

A Berlim de Bowie
segundo Philip Glass


Depois de ter lançado uma nova gravação da Low Symphony (que na verdade é também a Sinfonia Nº 1 de Phip Glass), a Orange Mountain Music apresenta agora um novo registo de uma outra obra sinfónica de Glass baseada na música de David Bowie. Este texto integra parte de um artigo originalmente publicado no DN com o título 'Fase berlinense de Bowie inspira discos de jazz e de música sinfónica'.

Com uma obra discográfica que assinalou este ano os 40 anos de vida, David Bowie somou já vários episódios marcantes e influentes. E se foi com Ziggy Stardust (em 1972) que a sua carreira ganhou solidez e dimensão global foi um pouco mais tarde, com uma sucessão de discos que tiveram a cidade de Berlim como casa que o músico assinalou os momentos mais revolucionários da sua discografia. Depois de uma fase atormentada em Los Angeles, em Berlim Ocidental Bowie viveu um tempo de paz, os berlinenses, mesmo que o reconhecendo, aceitando-o como um dos seus, deixando-o viver o dia a dia quase como um anónimo. Low (1977), Heroes (1977) e Lodger (1979) – aos quais podemos juntar o álbum ao vivo Stage (1978) – definiram um momento de grande visão que conciliou as guitarras e as heranças do rock com a descoberta de electrónicas e, sobretudo nos discos de 1977, juntou a escrita de canções à criação de uma série de temas instrumentais nos quais, com a ajuda de Brian Eno, Bowie assinou olhares sobre a vida urbana do seu tempo e, em particular, a cidade de Berlim.

Foi precisamente junto dos instrumentais de Low que, em 1992, Philip Glass encontrou a matéria prima da qual partiu para criar uma primeira sinfonia. O compositor recordou, nas notas que acompanharam em 93 a primeira gravação da Low Symphony, que o primeiro álbum que Bowie havia editado em 1977 usava técnicas que eram semelhantes a procedimentos então usados por compositores na área da música experimental, o que fez com que o disco não esgotasse a sua capacidade em cativar ouvintes apenas entre os que seguiam a música pop. Partindo dos instrumentais Subterraneans, Some Are e Warszawa, Bowie definiu os três andamentos da sinfonia. “Tratei os temas como se fossem meus e deixei que as transformações seguissem a minha inclinação composicional quando possível”, obtendo no final o que considerou como “uma real colaboração” entre a sua música e a de Bowie e Eno, como ele mesmo explicou no booklet da edição pela Point Music, que apresentava uma interpretação Apela Brooklyn Philharmonic Orchestra, dirigida por Dennis Russel Davies. Quatro anos depois, e com uma nova coreografia de Twyla Tharp por objetivo, Glass regressaria a Bowie, partido de seis momentos do álbum Heroes para, sob uma lógica semelhante, criar aquela que então se apresentou como a sua quarta sinfonia.

Este ano estas duas sinfonias regressam a disco. O maestro Dennis Russel Davies surge agora à frente da Sinfonieorchester Basel (que dirige desde 2009), apresentando pela Orange Mountain Music (editora do próprio Philip Glass), novas gravações da Symphony Nº 1 – Low e Symphony Nº 4 – Heroes, o díptico criado sobre a música de Bowie. Vale a pena lembrar que estas abordagens não esgotam as ligações de Glass às esferas e figuras da música popular, que podemos reconhecer também em ciclos de canções como Songs From Liquid Days (com Suzanne Vega, David Byrne, Laurie Anderson ou Paul Simon) e Book of Longing (com Leonard Cohen) ou em colaborações com Aphex Twin ou os S’Express.

A Heroes Symphony tinha já conhecido duas gravações no passado, uma pela Bournemouth Symphony Orchestra, dirigida por Marin Alsop (editada pela Naxos) e outra pela American Composers Orchestra, sob direção do maestro Dennis Russel Davies, talvez o maior especialista na música orquestral de Philip Glass. Esta nova gravação coloca o mesmo Russel Davies ao comando de uma orquestra, mas desta vez frente à Sinfonieorchester Basel, com a qual tinha já gravado a Low Symphony.

Ao passo que na sinfonia criada em torno de Low encontramos um conjunto de três reflexões que Glass faz nascer sobre elementos de três temas instrumentais de Bowie, na sinfonia centrada em Heroes o diálogo com o material musical de Bowie mantém em alguns momentos um relacionamento mais próximo do disco original, seguindo naturalmente depois os destinos de uma demanda pessoal que tem o álbum de 1977 como ponto de partida. A estrutura da sinfonia é também diferente, dividida em seis andamentos, cada qual tendo uma faixa de Heroes como ponto de partida, nem todas elas contudo temas instrumentais. Um dos seis temas sobre os quais Glass criou a sinfonia data das mesmas sessões em que foi gravado o álbum, mas surgiu apenas mais tarde como faixa extra numa reedição em 1991, vindo depois a integrar também o alinhamento da antologia de instrumentais All Saints.



Como complemento a este texto (e ao que se segue num link) vale a pena recordar este diálogo entre Philip Glass e David Bowie, por ocasião da apresentação da Low Symphony, em inícios dos anos 90. É o que acontece quando dois seres maiores reconhecem que se escutaram mutuamente, da música de um tendo nascido, aqui e ali, reflexões que os conduziram a novas ideias.

Podem recordar aqui o que escrevi em maio sobre a Low Symphony, editada este ano também pela Orange Mountain Music.