quinta-feira, agosto 14, 2014

Robin Williams não era um pinguim

Com a morte de Robin Williams, desapareceu um dos actores mais resistentes à banalização dos (e pelos) "efeitos especiais" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Agosto), com o título 'Elogio dos actores e dos pinguins'.

Em 1980, quando descobrimos Robin Williams em Popeye, de Robert Altman, lembro-me da pergunta premente: que é “isto”? Em sentido literal: como definir tal interpretação? Num misto de agilidade da pose e precisão do gesto — em linha directa da experiência da stand-up comedy —, Williams emergia como um herdeiro do classicismo de Hollywood, pressentindo o corpo do actor como “coisa” moldável segundo modelos de outras formas de figuração, nomeadamente a BD e o desenho animado.
Compreendemos, agora, que tal exuberância antecipava, ainda que de modo ambíguo, a possibilidade de a presença do actor ser contaminada pelas mais diversas formas de manipulação (os célebres “efeitos especiais”) num novo quadro de representação — quadro virtual, entenda-se, em que o actor, melhor ou pior, está condenado a imaginar o cenário que irá sobrepor-se ao fundo verde do estúdio.
A carreira de Williams evoluiu assombrada por essa tendência que tem vindo a minar o grande património narrativo de Hollywood. Veja-se o monumental disparate que é Jumanji (1995), filme em que o ecrã já só é entendido como duplo de um banal jogo de vídeo; por alguma razão, Joe Johnston, o realizador, veio a assinar produtos de espectacular indigência narrativa como Capitão América: o Primeiro Vingador (2011).
Nesta perspectiva, e para além do combate com os seus demónios interiores, Williams viveu também uma odisseia de sobrevivência no interior de um sistema de produção que, em muitos aspectos, tem vindo a prescindir de um dos seus trunfos mais genuínos. A saber: a capacidade de transfiguração dos actores.
Lembramo-lo, por isso, em personagens que envolvem os mais delicados enigmas humanos. São personagens que nascem da exaltação do poder libertador das palavras, como em O Clube dos Poetas dos Mortos (Peter Weir, 1987) ou O Bom Rebelde (Gus van Sant, 1997), ou até da capacidade encantatória da própria voz humana, como aconteceu em Alladin (1992), desenho animado em que compunha o Génio da Lâmpada. Por vezes, são personagens de perturbante ambivalência moral que circulam por filmes notáveis — como a invulgar tragédia familiar Câmara Indiscreta (Mark Romanek, 2002) —, pouco ou nada protegidos por um marketing vocacionado para as rotinas dos blockbusters. Enfim, são provas esclarecedoras da versatilidade de alguém que, na animação Happy Feet (2006), conseguiu mesmo cantar o My Way, de Frank Sinatra, com sotaque espanhol. Difícil? Talvez, sobretudo tendo em conta que a personagem de Williams era um... pinguim.