domingo, agosto 31, 2014

Nos 20 anos de 'Dummy' (parte 3)


Lançado em finais de agosto de 1994 o álbum de estreia dos Portishead é hoje um disco de absoluta referência quando se conta a história dos anos 90. Este texto é parte de um artigo originalmente publicado no suplemento Q. do DN, com o título "Dummy: um clássico do nosso tempo".

Barrow aprendeu, impressionou e pouco depois era convidado a colaborar em Homebrew, de Neneh Cherry. Entre os teclados começou a descobrir caminhos... As ideias foram ganhando forma contando com vários colaboradores, entre os quais Helen White (que pouco depois gravaria com os Alpha) e Beth Gibbons, que tinha conhecido num programa estatal de criação de empregos algum tempo antes. Geoff mandou-lhe um fundo instrumental, ela respondeu gravando a voz que o impressionou não apenas pelas suas qualidades tímbricas e interpretativas, mas pelas palavras que usava...

Beth (n. 1965) vinha de uma comunidade rural relativamente isolada, entre Bristol e Bath. Viu os amigos a partir para a universidade e foi ficando por ali. Teve primeiras experiências em bandas locais e trabalhou com Paul Webb (que fora baixista dos Talk Talk) no projeto .O.Rang. Não deixa de ser curiosa esta última ligação, correspondendo os últimos discos dos Talk Talk a um espaço de busca de uma certa experimentação textural que define eventuais pontos de afinidade com a música dos Portishead.

O guitarrista Adrien Utley (n. 1957) – para quem a descoberta do álbum Low End Theory dos A Tribe Called Quest havia tido um efeito de revelação – estava por ali, entre as sessões, e entrou a bordo do projeto depois de lhe ser pedida uma parte para guitarra em Sour Times. Passa então a coassinar não apenas a produção como a própria escrita.

David McDonald, que assegurou o trabalho de engenharia de som em Dummy, recorda sessões iniciais de escuta de discos em estúdio, nos quais Geoff procurava elementos que samplava (7), ali encontrando pedaços de matéria sonora para depois moldar. A evolução dos trabalhos – e a tomada de consciência de processos jurídicos que afetaram, entre outros, discos dos De La Soul ou Digable Planets – levou o grupo a levar uma série de músicos a estúdio. De algumas dessas sessões nasceriam loops próprios que usariam nas canções, ao mesmo tempo surgindo ali o que seria, depois, a banda de palco que os acompanharia nos concertos (8).

O processo de trabalho partia habitualmente de uma primeira etapa na qual, em estúdio, eram criados os sons que, depois de samplados, ordenados e alguns deles transformados em loops, definiam a base. Instrumentação adicional era acrescentada depois. E só no fim a gravação era entregue a Beth para que esta pensasse na letra e vocalização. O trabalho era ponderado e discutido coletivamente. E com um objetivo claro: fazer canções.

O carácter das canções, dominado por tons menores e ritmos suaves, traduz, segundo defende R.J. Wheaton, “não um statement artístico deliberado, mas antes uma expressão natural das influências e inclinações da banda" (9). Ou, como Utley descreveria numa entrevista, “sempre bandas sonoras, sempre tons menores, ligeiramente atonal, com mutações e pelo lado triste das coisas”. Barrow vincaria mesmo um profundo desconforto perante a música mais ligeira: “Gosto de hip hop mais assombrado. E quando estava à procura de samples estava sempre em busca de algo que tivesse um conteúdo emocional estranho, algo que desencadeasse uma emoção, um tema ou atmosfera.” (10)

O primeiro aperitivo para o álbum surgiu em junho de 1994 com Numb, single cuja capa apresentava um fotograma do filme To Kill a Dead Man, de Alexander Hemming (11), como aconteceria depois com o álbum e os restantes singles que dele seriam ainda extraídos (Sour Times e Glory Box).

No final desse ano o disco foi eleito álbum do ano em vários jornais e revistas um pouco por todo o lado. E no ano seguinte sagrou-se vencedor do Mercury Prize, a mais importante distinção da indústria discográfica britânica. Por essa altura as vendas de Dummy à escala mundial tinham atingido os 850 mil exemplares. Em 2008, quando o grupo regressa de um longo hiato com o álbum Third, esse valor tinha ascendido ao patamar dos 3,6 milhões. Dummy tinha-se transformado num clássico.

(7) in Dummy, de R.J. Wheaton (Continuum Books, 2011), pág. 70.
(8) idem, págs. 72 e 73.
(9) idem, pág. 85.
(10) ibidem
(11) O filme foi expressamente criado para acompanhar o lançamento do álbum Dummy e surge como extra no DVD Roseland NYC 1992.