sexta-feira, julho 18, 2014

Kelly Reichardt e a Natureza

Recentemente homenageada no Curtas de Vila do Conde, Kelly Reichardt está também presente no circuito comercial através da estreia do excelente Night Moves — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Julho), com o título 'A ecologia revista em tom de conto moral'.

A americana Kelly Reichardt não é uma cineasta desconhecida nas salas portuguesas. Ela própria, aliás, veio ao nosso país para apresentar uma retrospectiva dos seus filmes, no âmbito da 22ª edição do Curtas Vila do Conde. Por isso, perante o seu título mais recente, Night Moves (em exibição), não podemos deixar de estabelecer pontes com o trabalho anterior de filmes como Old Boy (2006) e O Atalho (2010).
Todo o universo de Reichardt cultiva uma relação ambígua, por vezes subtilmente perturbante, com os elementos naturais. Dir-se-ia que quanto mais penetramos na Natureza, mais perdemos a certeza de qualquer naturalidade... Centrando-se na deambulação de duas personagens pelas montanhas do Oregon, Old Boy era uma espécie de fábula do “bom selvagem” virada do avesso, num crescendo de inquietação; O Atalho, por sua vez, convocava as convenções do western clássico, acompanhando um grupo de pioneiros que, a caminho do Oeste, deparavam com algo bem diferente das suas expectativas.
Em Night Moves, a questão da relação com a Natureza coloca-se a partir de uma situação de activismo político. As personagens centrais são três militantes ecológicos — interpretados por Jesse Eisenberg, Dakota Fanning e Peter Sarsgaard — que tomam uma decisão drástica para “proteger” uma determinada zona de paisagem: destruir, com explosivos, uma barragem...
Poderia ser uma história mais ou menos policial. E é verdade que Night Moves possui esse misto de incerteza e “suspense” que o faz funcionar como um thriller psicológico. Mas, justamente, a singularidade dos resultados nasce da peculiar dimensão psicológica que Reichardt vai instalando, cena a cena, gesto a gesto, sempre através de uma estranha serenidade — em última instância, este é um conto moral sobre a discussão e contestação dos valores sociais dominantes, tanto mais intenso quanto vai explorando tal dinâmica a partir das reacções mais discretas dos três protagonistas.
Se nos voltarmos a recordar da lógica redentora que, durante muitas décadas, a Natureza exibiu no cinema de Hollywood (em particular no western), poderá dizer-se que Reichardt, autora emblemática dos circuitos independentes, é alguém que aposta em confrontar tal herança com as convulsões do mundo contemporâneo. Provavelmente, faz sentido dizer que Night Moves pertence a uma árvore genealógica da produção americana que passa, de forma decisiva, por Deliverance (1972), o extraordinário filme de John Boorman (entre nós intitulado Fim de Semana Alucinante) sobre a experiência trágica de descoberta de uma região exuberante, também ela atravessada por um rio, também ameaçada por uma barragem.
Tudo isso ilustra uma evolução que importa ter em conta. Assim, para além do rótulo de “independente”, Reichardt pertence a um lote de cineastas americanos (incluindo alguns que trabalham com os grandes estúdios — veja-se Martin Scorsese ou David Fincher) que não desiste de questionar a herança plural dos clássicos. Deixando bem clara a intensidade de um desencanto muito presente.