domingo, julho 13, 2014

A música do século XXI está a nascer
numa terra-de-ninguém


É curioso verificar que o texto que acompanha a edição Retrospective, caixa que junta os quatro álbuns a solo que Max Richter editou entre a sua estreia em Memoryhouse e o mais recente volume da série Re-Composed, no qual aborda as Quatro Estações de Vivaldi, é assinado por Paul Morley. Ele é um jornalista veterano, cujo trabalho tanto soube estar atento ao aparecimento dos Joy Division em finais de 70 como, em inícios dos oitentas, deu por si ao lado de Trevor Horn no lançamento da ZTT Records, editora que procurou uma nova linguagem para a comunicação da música pop. A opção por Morley acaba assim por traduzir o espaço onde está (claramente) a emergir uma música que se vai afirmando como expressão progressivamente mais visível daquilo que poderá ser um dia identificado como a música do início do século XXI. Não usaria aqui o termo “clássico” porque na verdade nunca consigo deixar de associar à palavra uma noção de época à qual também surge associada. E “erudito” é um termo muitas vezes usado com tremenda ignorância sobre o que emerge dos espaços da música a que muitas vezes se atribui o rótulo “popular”. Chamemos-lhe música do século XXI... Uma música que vai ganhando forma sem acreditar em barreiras de géneros e assente numa troca de experiências e conhecimento mais alargado do que é o mundo musical de hoje. Que escapa aos que vivem de olhos vendados para lá de tudo o que é pop, rock e afins. E que igualmente passa ao lado dos que, fruto de uma formação “clássica” mais canónica, não parecem reconhecer-se por estes caminhos.

É precisamente nessa terra de ninguém que as coisas estão a acontecer. Uma terra que de certa maneira nomes como Gershwin ou Bernstein já visitaram ao entender que podiam cruzar linguagens para traduzir um pulsar realista dos ecos do seu tempo (e dos seus lugares). Terra que os minimalistas ajudaram a desenvolver (sobretudo Glass e Reich, mas em finais dos sessentas também Riley), estabelecendo pontes que comunicaram com outras músicas e assim alargaram horizontes. Terra que muito ganhou também com as visões que Brian Eno ajudou a definir quando descobriu ideias que transcendiam as fronteiras mais clássicas da canção. Que John Tavener vislumbrou quando chamou a voz “não educada” de Björk para uma peça conjunta que um dia será vista como referência. E que, vale a pena frisar, muito ganharam também com o cada vez mais presente entendimento das electrónicas e do próprio estúdio como ferramentas fulcrais de trabalho (algo que podemos agradecer ao trabalho de Stockhausen e alguns dos seus contemporâneos, e também a nomes como os Kraftwerk, Klaus Schulze e outros mais que dali partiram para experimentar outros patamares possíveis a partir dessas raízes comuns).

É nesta terra onde tanto os Kraftewerk como Arvo Pärt são matéria prima de reflexão que está a emergir uma nova música. E entre os seus primeiros grandes valores surgem nomes que juntam uma formação musical “clássica” a uma visão que não se fecha nos cânones. E assim contamos com nomes como os de Johnny Greenwood (que é guitarrista dos Radiohead), Richard Reed Parry (que inrtegra os Arcade Fire), Bryce Dessner (que é um dos elementos dos The National) ou Nico Muhly (que trabalhou com Philip Glass e tem assinado arranjos para vários discos pop/rock). Todos eles gravaram já discos de obras orquestrais por editoras como a Decca ou Deutsche Grammophon, Mulhy tendo já estreado uma primeira ópera (espaço que entretanto foi já igualmente ensaiado por nomes como os de Damon Albarn ou os The Knife). Contudo, talvez caiba a Max Richter o papel de ser o primeiro a ensaiar uma comunicação que eventualmente culmine numa derrocada de muros entre os universos da “clássica” e da cultura “pop” (se entre compositores já começaram a tombar, entre ouvintes e programadores ainda é desafio a aprofundar).

Nascido na Alemanha e educado desde cedo no Reino Unido, Max Richter é apresentado na Biografia que lemos no booklet de Retrospective como alguém que toma os Beatles e Bach como fontes de inspiração. Porém é da descoberta das músicas de Eno, Pärt, das potencialidades das novas electrónicas e do conhecimento histórico da música, do trabalho ao lado de uns Future Sound of London ou com orquestras que nasce a música de visões largas que nos propõe. Depois de uma etapa como instrumentista no coletivo Piano Circus foi com o belíssimo Memoryhouse (que este ano teve estreia ao vivo no Barbican) que se estreou discograficamente em 2002 num disco que juntava olhares pessoais pelas suas vivências e que conciliava uma demanda sonoplasta quase cinematográfica (usando electrónica e sons reais captados fora de estúdio) com o labor de uma orquestra.

Memoryhouse definiu um ponto de partida para o talhar de uma linguagem que Max Richter aprofundou depois em The Blue Notebooks (onde juntou palavras de Kafka na voz de Tilda Swinton), Songs From Before (que coloca Robert Wyatt a ler Murakami), 24 Postcards in Full Colour (uma reflexão de microcomposição a partir da noção de ringtone) ou Infra (que convoca heranças de Schubert e aprofunda a busca de caminhos pessoais.

Retrospective surge na sequência de um acordo firmado entre Max Richter e a Deutsche Grammophon que surge depois do impacte expressivo da sua contribuição (via Vivaldi) para a série Re-Composed. É uma caixa “retrospetiva” que assim junta os discos que editou entre 2004 e 2010. E que mostra que, de facto, está já a emergir uma música orquestral e de câmara do século XXI. E que, tal como nos espaços da comunicação, não acredita mais em barreiras nem distâncias.