PABLO PICASSO A Dor (1902-1903) |
Na sua desavergonhada demagogia patrioteira, muitas formas de encenação televisiva da selecção portuguesa de futebol dispensam o exercício da virtude da inteligência — esta crónica foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (20 Junho), com o título 'Da histeria futebolística'.
Durante o jogo Alemanha-Portugal (RTP1), António Tadeia teve o cuidado de sublinhar que, mesmo que se possa discutir a justeza da expulsão de Pepe, o comportamento do jogador foi extremamente incorrecto: dirigir-se a um adversário com o gesto de quem vai agredi-lo com a cabeça não é coisa que se avalie pela maior ou menor intensidade da cabeçada — é tão só uma atitude grosseira e anti-profissional.
Não foi o único comentador que repudiou tal comportamento. E ainda bem. Depois de várias semanas de disparatada canonização televisiva da selecção portuguesa, era tempo de alguém descer à Terra. Não estamos perante figuras angelicais que justifiquem que se gastem infinitas horas a mostrar os autocarros em que viajam, os hotéis onde se hospedam ou as casas de banho que vão utilizar... Algum decoro exigiria que se abordasse o futebol como misto de planificação e acaso, não como ilustração histérica de uma desavergonhada demagogia patrioteira.
Para uma modestíssima minoria (a que pertenço), a derrota com a Alemanha foi o resultado normal de uma equipa que não existe a não ser na mente de Paulo Bento e que, ciclicamente, nos presenteia com heróicas vitórias sobre potentados futebolísticos como o Lichenstein ou Andorra (nem sempre...). A serena eloquência com que os alemães reduziram a equipa de Bento à sua endémica banalidade confirma também que a mitologia “tele-espiritual” com que se tem encenado o onze português ofende as mais básicas formas de inteligência.
Repare-se: discutir isto não é uma questão de tácticas. Portugal até pode vir a ser campeão do mundo... Trata-se de discutir, isso sim, o ruído ensurdecedor (pontuado por publicidade no mesmo tom) que celebra a selecção de futebol como derradeiro salva-vidas da honra nacional. Muitas formas de intervenção televisiva ignoram a violência normativa das linguagens que aplicam, prestando um péssimo serviço à nossa identidade colectiva. No limite, cada cidadão é reduzido a figurante pueril de uma multidão obrigatoriamente ululante.