domingo, maio 11, 2014

Eurovisão 2014: uma leitura política


Quando as canções estão pelas ruas da amargura o que resta ao Festival da Eurovisão senão ser um espelho político e social da Europa (e arredores) que ali procura uma representação? Acreditando que a Leste a coisa ainda seja de orgulho pela afirmação junto dos outros e entre os nórdicos este continua a ser um espaço de mercado da música pop(ular) com alguma consequência, a sudoeste da Escandinávia e do lado de cá da antiga cortina de ferro convenhamos que é coisa de nicho (e com um reconhecido culto que convém ter em conta).

O que tirar então da edição deste ano? Já ontem aqui tinha assinalado que não havia uma única canção acima de um patamar de mediocridade que, fosse como em certos concursos (sobretudo literários) poderia levar a organização a determinar que não haveria nenhum com capacidade (musical) para se sagrar vencedor. Mas como as regras são outras e o que conta são os pontos (e, convenhamos, o que nasce da conta do televoto), lá houve ranking arrumado no final da noite após o fim da maratona de votações. E ganhou a mais óbvia vencedora. O aparato era de pura tradição eurovisiva, desde a pose de diva clássica ao efeito-choque (não ler como expressão de intolerância) da imagem. Afinal o Eurofestival tem um historial de desafio às normas de representação de género que faz de si um espaço importante de afirmação da cultura queer (não que seja essa a única razão para que o seja). Se a canção não era mais senão uma banal reativação do modelo da balada sinfonista (que tem paradigma maior entre algumas Bond Song clássicas), o peso simbólico da vitória de Conchita Wurst acaba por ser uma expressão coletiva de uma Europa que sabe lidar com a diferença e a diversidade, por oposição a focos de intolerância conservadora que brotam tanto no Leste do continente como em países de África ou Médio Oriente. Rise Like a Phoenix pode tornar-se assim um símbolo de tolerância e respeito, fazendo da vitória austríaca uma afirmação política (não que apague algumas reações de homo e, sobretudo, transfobia, que nascerão também no velho solo europeu ocidental entre comentários, redes sociais e conversas nos próximos dias).

Outra importante expressão política desta edição do festival teve foco entre o principal espaço de tensão na Europa atual: a Ucrânia e a Rússia. A primeira somou mais votos. E a Rússia este ano só colheu pontuação de 13 países, quebra monumental face aos 27 que, em 2013, votaram no país governado por Putin.

Apesar do esbatimento do efeito vizinho vota em vizinho e amigo vota em amigo, sem esquecer as diásporas, com a introdução de 50% das votações partilhadas entre o televoto e um júri de sala, a verdade é que as ex-repúblicas soviéticas parecem pouco dadas a dar as pontuações maiores a outros que não tenham partilhado essa ligação que caiu nos anos 90... O mesmo se podendo dizer dos estados que nasceram da desagregação da Jugoslávia.

Foi contudo esta mudança recente no sistema de votação que valorizou de novo as canções (mesmo sendo estas entre o mau e o péssimo). E permitiu levar ao top 3 deste ano um espaço “euro-clássico” com a Holanda em segundo e a Suécia em terceiro.

De resto? Nada de novo por aqueles lados. Talvez a força simbólica da vitória de Conchita Wurst lhe dê visibilidade – como sucedeu com Dana International quando venceu em 1998. Mas, convenhamos, quanto tempo durou o efeito da vitória eurovisiva na carreira da cantora israelita?... Pois, quase nenhum.

PS. Foi de facto estranho ver Portugal a não dar um único ponto a Espanha quando, nas últimas três vezes que tínhamos participado, lhe tinha entregue os 12 pontos... Mas pode ser da canção, não?...

Os números:

Publiquei entretanto no DN um texto sobre a análise das votações, no qual se refere que a canção portuguesa falhou o apuramento para a final por um ponto. Podem ler aqui.