4 de Abril de 2014: Marguerite Duras nasceu há exactamente um século, em Saigão, na então Indochina francesa. A sua obra literária, imensa e obsessiva, existe também como uma ante-câmara do seu trabalho cinematográfico — este texto foi publicado no suplemento "Qi", do Diário de Notícias (29 Março), com o título 'A mulher que viu tudo'.
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Dizem as crónicas da época que Duras chegou ao cinema, com La Musica (1967), ainda co-realizado com Paul Seban, e Détruire, Dit-Elle (1969), não exactamente pela procura de uma linguagem complementar, antes por se sentir insatisfeita com o facto de alguns filmes baseados em argumentos seus se assumirem como “ilustração” da sua escrita — será que podemos responsabilizar, em particular, Peter Brook pela sua versão de 1960 do romance Moderato Cantabile, publicado dois anos antes?
É uma questão lateral e, convenhamos, irrelevante. O que importa é o facto de Duras entrar no cinema, não tanto para contar histórias mas, aplicando o seu vocabulário, para explorar a ausência das histórias. A palavra “ravissement”, associada à personagem de Lol V. Stein, poderá resumir o que está em jogo. Poderemos traduzi-la como deslumbramento, nessa medida valorizando o efeito do objecto sobre quem o olha — Lol V. Stein deslumbra os outros. Mas podemos também considerar que se trata de um arrebatamento, em sentido literal — Lol. V. Stein é aquela que arrebata os outros, quer dizer, os desloca do seu lugar, levando-os a não saber que lugar ocupam.
Um desvio de Duras pela pintura, mais concretamente por um quadro de Pierre Bonnard (2), poderá ajudar-nos a sentir este movimento de deriva que a sua escrita estipula. O texto, também incluído em A Vida Material, tem um único parágrafo e chama-se “Bonnard”. É a (não) história da criação de uma obra: “Não... não era um Monet nem um Manet. Era um Bonnard. Foi em casa de uma pessoa em Berna, grandes coleccionadores de quadros. Havia um quadro de Bonnard: um barco com a família daquela mulher. Ele quis sempre modificar a vela. À força de insistir, as pessoas permitiram-lhe que ficasse outra vez com o quadro. Quando o devolveu, Bonnard disse que considerava que a tinha acabado. A vela tinha invadido tudo. Agora é maior do que o mar, do que as pessoas no barco, do que o céu. Pode acontecer num livro, numa curva da frase mudamos o tema do livro. Sem dar por isso, erguemos os olhos para a janela: a noite está ali. E no dia seguinte de manhã é outro o livro. Os quadros, os livros, não se fazem numa clareza completa. E faltam sempre palavras que digam isso, sempre.”
Se nos atrevermos a parafrasear a escrita sincopada de Duras, em permanente discussão do real e das suas fronteiras, poderemos acrescentar: os filmes não se fazem a partir de uma clareza completa; as suas imagens mostram isso, mesmo na impossibilidade de o tornar matéria visível.
Se o cinema nasceu sob o signo da amostragem do real, Duras chega a ele para discutir a sua proclamada transparência, nele inscrevendo a sua marca através de um admirável conjunto de filmes inclassificáveis (porque faltam palavras para os classificar...). Le Camion (1977) existe como uma espécie de modus operandi do seu labor cinematográfico, extrapolando até ao limite da crueldade — e do mais insólito humor — a noção clássica segundo a qual um filme é a concretização específica (filmada, precisamente) de um argumento que, de alguma maneira, organiza o mundo em história(s).
Que acontece, então, em Le Camion? Não exactamente a “encenação” de um argumento, mas a sua apresentação como peça de escrita e hipótese de figuração: uma escritora lê a um actor um argumento que quer filmar... A escritora é a própria Duras, num calculado efeito de “coincidência” que, em qualquer caso, não deve ser confundido com uma mecânica banalmente reflexiva e autobiográfica; o actor, entre a surpresa e um aparente cansaço, é Gérard Depardieu, na altura figura dominante da produção francesa. A pontuar esta deambulação por um filme sobre uma hipótese de filme, vão surgindo imagens descritivas (?) de um camião a atravessar diversas paisagens rurais...
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(2) PIERRE BONNARD (1867-1947) – Pintor do pós-impressionismo francês, a sua obra dificilmente encaixa numa tendência, repartindo-se por retratos e nus, paisagens naturais e interiores. Grande parte do seu espólio está no museu que tem o seu nome, no Cannet (região de Cannes).