Esta é uma versão alterada de um texto que foi publicado na edição de 26 de abril do DN com o título 'Desafiar as fronteiras do realismo'.
Uma ficção que não esconde um olhar atento que nos aproxima do registo documental surge como um dos primeiros grandes motivos de interesse da Competição Internacional do 11º IndieLisboa. Trata-se de Mouton, primeira longa-metragem de Marianne Pistone (n. 1976) e Gilles Deroo (n. 1969) (repete amanhã na sala 3 do mesmo cinema). Marianne e Gilles, que vivem e trabalham em Lille, conheceram-se numa associação ligada ao cinema documental e encararam este projeto como uma incursão criativa nos domínios da ficção, apresentando-nos um filme que explora a ideia do acaso como gatilho narrativo.
O filme acompanha, pela presença e depois pela ausência, a figura de Mouton, o nome (alcunha) pelo qual é tratado Aurélien, um jovem de 17 anos que é retirado à custódia da mãe e que encontra novas rotinas de vida como aprendiz na cozinha de um restaurante na pequena cidade de Courselles-Sur-Mer, na Normandia. Mouton acompanha o seu dia-a-dia no trabalho, entre amigos e namorada, até ao momento em que, numa noite de festa na cidade, um acontecimento inesperado (e traumático), fruto de um mero acaso, o leva a procurar outro lugar para viver. A segunda parte do filme acompanha aqueles que ali continuam a fazer os seus dias, a presença do protagonista manifestando-se então pela sua ausência. Optando muitas vezes por planos fixos, ocasionalmente levando a câmara na mão, ‘Mouton’ observa os lugares e as rotinas em que caminha a vida de Mouton com uma curiosidade documental (que se vinca, por exemplo, pelo trabalho de luz). Sem pressa, a câmara acompanha e partilha connosco as cadências do real, deixando claro que o olhar que nos propõe rompe a lógica e ritmos da linguagem da televisão e da Internet. O tempo, aqui, respira.
Estamos contudo num terreno em que o documentarismo habita sobretudo o modo de olhar. A mise en scène é cuidada (o que fica logo claro na sequência de abertura) e os enquadramentos são refletidos, sublinhando assim o tom poético que o filme acaba por sugerir, o facto de haver mais palavras ocasionais que diálogos com implicações narrativas acentuando uma proposta que vive mais de um conjunto de sensações que de precisas informações.
A noção de barreiras entre géneros e formas tem vindo a desaparecer em muita da criação artística do nosso tempo. Na música esta ideia tem sido marcante em muitas das criações dos últimos 30 anos, entre trabalhos de nomes como Philip Glass ou Nico Mulhy tendo-se, por exemplo, esbatido as noções de fronteira entre pop e clássica, o álbum Screamadelica dos Primal Scream (álbum de 1991) evidenciando, por sua vez, como o que é do foro da pop e o que chegava do universo da chamada música de dança viviam juntos tal e qual a Berlim recentemente reunida após a queda do muro. No cinema, e falando em concreto desta diluição de fronteiras entre a ficção e o documentário, podemos apontar como exemplo os recentes e magníficos A Última Vez Que Vi Macau, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata ou Lacrau de João Vladimiro (que foi uma das melhores surpresas da edição do ano passado do IndieLisboa) e que merecia uma vida mais visível nas nossas salas de cinema.