sábado, abril 12, 2014

Futebol, televisão e patriotismo

Como é o futebol enquanto matéria televisiva? Ou ainda: até que ponto a percepção social do futebol é, sobretudo, televisiva? — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias, com o título 'Futebol e patriotismo'.

1. Sob o signo dos 40 anos do 25 de Abril, seria interessante recolocar a questão do patriotismo. Em particular no espaço televisivo: que herança patriótica recebemos dos eventos de 1974 e quais os seus ecos no ano da graça de 2014? Esperar que a classe política se exprima sobre o assunto é uma triste ilusão — onde está um político que tenha alguma coisa a dizer sobre o aqui e agora do audiovisual português? Em todo o caso, os sinais são inequívocos (a começar, claro, pela publicidade que, nestas coisas, é a única entidade que pensa, a prazo, o seu labor): está a chegar uma vaga de patriotismo pueril enraizada na presença portuguesa no Mundial de Futebol.

2. Um aspecto curioso do tele-patriotismo, aliás ciclicamente repetido, é que, através dele, os valores dominantes da ideologia futebolística se “adaptam” com elegante pusilanimidade. A justiça, por exemplo... Foi interessante verificar que, durante meses e meses de sucessivas más exibições da selecção portuguesa, reconhecidas pela maior parte dos comentadores, esses mesmo comentadores nunca formularam a hipótese de o seu eventual apuramento constituir uma “injustiça”. Há uma explicação para isso: o conceito de justiça com que insistem em lidar não tem qualquer pertinência moral. E envolve um efeito lamentável: é mais fácil ceder à demagogia patrioteira do que reconhecer que o futebol não funciona como um tribunal em que ganham sempre os melhores.

3. Cheguei a pensar que o televisor estava a ter alguma interferência extraterrestre: por duas ou três vezes, já ouvi alguém concluir o comentário de um jogo de futebol considerando que se tinha feito justiça porque a equipa que marcou mais golos ganhou... Como? Por um lado, instilam no espaço social uma noção grosseira de justiça sem qualquer fundamento moral; por outro lado, elevam o pensamento filosófico a esta genial argumentação equivalente a proclamar que o tempo está seco porque não está a chover... Desculpem lá o mau jeito, mas organizem-se.