Darren Aronofsky está longe de conseguir reavivar o espírito do clássico filme bíblico: o seu Noé tem mais a ver com as rotinas televisivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Abril), com o título 'A nova Arca digital'.
As notícias que chegam dos EUA, sobre a “polémica” em torno do filme Noé, de Darren Aronofsky, não podem deixar de suscitar uma irónica surpresa. De facto, a ousadia filosófica e argumentativa do projecto é tão rica (e, sobretudo, tão pobre...) como a rotina tele-dramática com que deparámos, recentemente, em O Filho de Deus, a série com Diogo Morgado “transformada” em objecto de cinema.
Em boa verdade, se andamos à procura de alguma ousadia para lidar com o texto bíblico, criando um grande espectáculo banhado por uma sensualidade que recusa reduzi-lo a um banal caderno de encargos “demonstrativos”, basta ver a admirável herança de Cecil B. DeMille, nomeadamente através das duas versões de Os Dez Mandamentos (1923 e 1956) ou Sansão e Dalila (1949). Isto para já não falarmos do misto de energia lúdica e risco de espectáculo que encontramos em algumas superproduções dos anos 60 como O Rei dos Reis (1961), de Nicholas Ray, ou A Bíblia (1966), de John Huston.
O trabalho de Aronofsky é tanto mais limitado quanto reflecte o drama conceptual deste cinema descendente dos valores tecnológicos de O Senhor dos Anéis. Aliás, a aplicação dos efeitos digitais, para além de não garantir a simples dramatização do espaço, falha na valorização narrativa de alguns elementos tão fundamentais como os animais da Arca, reduzindo-os a figurantes banais que nem sequer têm direito a grande visibilidade.
Fica um dado sociológico e político que vale a pena sublinhar: parece haver um certo empenho de alguns sectores religiosos no sentido de relançar os temas bíblicos no espaço do cinema e, genericamente, do audiovisual. Infelizmente, através de filmes como Noé, não se faz justiça nem à riqueza dos textos bíblicos nem às mais nobres tradições de Hollywood.