sexta-feira, abril 25, 2014

25 de Abril sempre — o que é sempre?

1. Olhem e escutem à nossa volta — na véspera do 25 de Abril de 2014, a gritaria mediática em torno do futebol funde-se com a gritaria mediática em torno do 25 de Abril... A defesa da democracia talvez nos obrigue também a perguntar: foi para isto que se fez o 25 de Abril? O de 1974, entenda-se.

2. É bem verdade que quase ninguém entre os nossos decisores — a começar pelos decisores políticos de direitas e esquerdas — se tem mostrado disponível para pensar a herança do 25 de Abril também em termos mediáticos e, sobretudo, questionando os poderes muito específicos que, em 40 anos, a televisão adquiriu na configuração de toda a nossa vida social (afinal de contas, para nos ficarmos pelo mais terrível, o Big Brother é uma vergonha anti-humanista que não satisfaz nem promove qualquer valor visceral de qualquer variante da democracia).

3. Aliás, tal reflexão é quase sempre bloqueada por um vício de esquerda (há muito cobardemente integrado pela direita) que obriga a demonizar tudo o que está antes do 25 de Abril. Dir-se-ia que, cada vez que ensaiávamos um passo para além da soleira da porta de nossa casa, um "pide" aparecia e torturava-nos até ter a certeza se tínhamos ou não filiação partidária... Nunca ninguém saíu à rua para comprar as sua primeiras jeans, muito menos para jogar bilhar no clube do bairro.

4. É muito triste, aliás, observar como muita gente da minha geração — os que têm, agora, entre 55 e 65 anos — insiste em promover (?) um retrato da sua juventude em que tudo se passa num verdadeiro campo de concentração. Poderá concluir-se que ninguém andava a ouvir Beatles nem Rolling Stones... Viviam todos num universo tão liofilizado que ninguém teve sequer conhecimento da discussão sobre as sugestões sexuais de A Primeira Noite (1967), com Dustin Hoffman e Ann Bancroft... E, claro, ninguém leu o Love Story (1970), de Erich Segal.

5. É estranho, de facto, que as memórias das muitas coisas maléficas da ditadura salazarista precisem, assim, de censurar a pluralidade factual e afectiva de toda uma época. Como? Reduzindo todas as suas vivências a uma dicotomia — "repressão/liberdade" — que, pelo estamos a ver e ouvir, é a única que, hoje em dia, se vende bem em televisão. Ora, acontece que a complexidade visceral de qualquer contexto histórico nos ensina que esta "liberdade" entendida como mero jingle da "revolução" não passa de um rótulo fácil, inoperante para compreendermos as tensões internas da nossa própria identidade individual e colectiva.


5. Como não recordar a bela canção de José Niza (letra) e José Calvário (música) cantada por Paulo de Carvalho? A sua condição de senha radiofónica do movimento dos capitães de Abril conferiu-lhe um incontornável e fascinante simbolismo histórico. Em todo o caso, só saberemos valorizar tal simbolismo se lembrarmos a sua mais básica ambivalência. A saber: a romântica "neutralidade" da própria canção, bem distante de qualquer lógica panfletária; e, já agora, o facto de ter participado no Festival da Canção, precisamente uma produção emblemática da televisão do Estado Novo (que, para mal dos nossos pecados, era artisticamente muito mais interessante do que quase todas as reedições que o mesmo festival tem tido em tempos de democracia).

6. Há qualquer coisa de profundamente infantil — mas a cultura tele-dominante é uma avalancha de infantilismo — no facto de ter triunfado a ideia de que quanto mais demonizarmos tudo o que aconteceu em Portugal até ao dia 24 de Abril de 1974, mais reforçamos, por uma espécie de resgate mágico, a pureza da nossa vivência democrática.

7. Infelizmente, a verdade é bem diferente. E a histeria com que passou a ser socialmente encenada qualquer efeméride tende a ter como modelo narrativo, único e compulsivo, as práticas de ajuntamento decorrentes da vivência banalmente clubista do futebol. Para a cultura dominante, neste ano da graça de 2014, muita-gente-na-rua tornou-se uma abstracção sagrada, equivalendo sempre a uma espécie de redenção sem arestas nem incertezas. Sabemos gritar "25 de Abril sempre", mas ninguém pergunta o que significa a palavra sempre agarrada a uma data — sobretudo quando a essa data se somam os factos, as imaginações e os silêncios de 40 anos.