O espaço televisivo mobilizou Portugal para um dos mais graves dramas da sua história de séculos: dois jogos de futebol não começaram ao mesmo tempo... Enquanto isso, como é óbvio, o mundo não existe — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (31 Janeiro), com o título 'Futebol e casamentos'.
Em televisão, a ideologia dominante tende a promover uma visão pitoresca e instrumental da cultura popular. Podem gastar-se horas a especular sobre as drogas que conduziram Michel Jackson à morte, sem lembrar por um segundo o seu génio musical. Ou, então, elaboram-se grandes discursos demagógicos em torno de José Afonso, exaltando-o como o “Zeca”, como se metade da população tivesse passado anos a partilhar com ele o pequeno almoço...
Não admira que os 33 casamentos realizados durante a cerimónia dos Grammy (espectáculo transmitido, em directo, pela SIC Caras, na madrugada de domingo para segunda-feira) não tenham tido especial relevância no alinhamento dos noticiários, muito menos em qualquer espaço de “análise”. Entretanto, o nosso pobre Portugal era mobilizado para uma empolgante saga metafísica: a de avaliar se o facto de dois jogos de futebol terem começado com uma diferença de dois minutos e 45 segundos resultou de um acidente sem importância ou, pelo contrário, corresponde a uma cena de O Padrinho IV que, estranhamente, Francis Ford Coppola não quis realizar...
Que aconteceu, então? Num quadro musical construído sob o signo do direito à igualdade, pontuado por duas performances – da dupla Maklemore/Ryan Lewis (vencedores de quatro prémios, incluindo melhor álbum rap) e Madonna —, a cantora e actriz Queen Latifah [foto] celebrou a união de 33 casais, heterossexuais e homossexuais. Com um detalhe nada secundário: a sua tarefa não foi meramente simbólica, mas consumada no quadro da mais estrita legalidade (graças a uma licença especial, concedida pelo estado da Califórnia, através do Los Angeles County).
O evento envolve algo de fulcral para tentarmos compreender o mundo das relações humanas. A saber: a cultura popular não é uma colecção de gente risonha a fazer coisas a que chamamos “folclore”, mas sim um espaço de permanente agitação simbólica, estética e política onde se exprimem os grandes temas da vida pública e privada, e também os valores que nela se confrontam. Foi isso que se cantou (e viveu) nos Grammy.