domingo, fevereiro 02, 2014

Lou Reed em quatro discos (1):
'White Light / White Heat' (1968)


Este texto é um excerto de um artigo sobre Lou Reed publicado em inícios de janeiro no suplemento Q. do DN com o título: O legado imortal do poeta da cultura rock'n'roll.

“Não vou mais fazer coisas complicadas, porque me apercebi de que as pessoas não compreendem, e agora não estou mais interessado nessa ideia” (Lou Reed, 1972)

Poucos compraram na altura o álbum de estreia dos Velvet Underground, mas todos eles terão formado depois uma banda. Quem o disse foi Brian Eno, numa daquelas frases maiores que escrevem a história da mitologia pop. O disco que foi diferente entre os diferentes e que, de certa forma, lançou as bases daquilo a que hoje chamamos o rock alternativo, nasceu em 1967 mas ainda hoje gera descendências. Quais? Dos Television aos R.E.M., dos Sonic Youth aos Jesus & Mary Chain, dos Pavement aos Strokes, dos U2 aos Galaxie 500, de David Bowie aos Joy Division... Podemos juntar ainda a geração alemã que mudaria a face da música nos anos 70 como sendo também herdeira natural das visões ali lançadas. E conta-se que as letras das canções desse disco com uma banana na capa eram passadas entre os que em tempos talharam o caminho para a revolução checa. De resto, na peça de teatro Rock’n’Roll (que entre nós teve expressão numa brilhante encenação de João Lourenço, no Teatro Aberto), o dramaturgo Tom Stoppard faz dos Velvet Underground uma peça-chave no mapa musical e político dos últimos 46 anos.

Juntando Lou Reed (1), John Cale (2), Sterling Morrisson (3) e Moe Tucker (4), os Velvet Underground tinham ganho visibilidade sob a presença próxima de Andy Warhol, que os havia chamado para o universo da sua Factory, tornando-os assim como um satélite das suas ideias e intervenções, porém com um considerável grau de liberdade. A atriz e cantora alemã Nico (5) juntou-se ao elenco (onde ficaria por apenas um disco). Warhol desenhou a capa do álbum mas como produtor (tal como está creditado) nada interferiu.

Ícone do seu tempo e hoje reconhecido como um dos discos mais influentes da história da música popular, The Velvet Underground & Nico teve contudo uma vida difícil no seu tempo. Paul Morrisson diria mesmo que a editora não sabia o que fazer com o álbum, tanto que, depois de gravado, levou um ano para ser editado. E Morrisson critica mesmo que Tom Wilson, da editora Verve/MGM, “só comprou o álbum por causa de Nico” e que não via qualquer talento em Lou Reed. (6 ). Também se sabe que houve um executivo da Decca a rejeitar os Beatles em 1962, certo?

Como clima moral, 1967 foi para os Velvet Undreground um tempo difícil, defende Joe Harvard, o autor do volume dedicado ao disco de estreia do grupo integrado na série 33 1/3. O foco das atenções da imprensa sobre o que era então a nova cultura jovem estava desviado para San Francisco e os novos consumos de drogas. O medo eclodiu e o vice-presidente americano Spiro Agnew chegou mesmo a tentar expulsar With a Little Help From My Friends dos Beatles das rádios, depois de ver a canção como um hino sobre drogas. Os Velvet Underground eram todavia mais diretos. A poesia que corria pelas canções não deixava dúvidas sobre aquilo de que falavam, cabendo a Lou Reed assim um papel determinante de retratista de um tempo, uma cultura e, acima de tudo, um lugar: Nova Iorque. O plano de Lou Reed era, de resto, o de “tirar a sensibilidade de Raymond Chandler ou Hubert Selby ou Delmore Schwartz ou [Edgar Allan] Poe e levá-la à música rock”, tal e qual descreve Bockris em Transformer (7).

O mesmo Victor Bockris, juntamente com Gerard Malanga, em Up-Tight, afirma que lhe pareceu então estranho que a música dos Velvet Underground fosse também banida até mesmo das estações de rádio de Nova Iorque. “Eram a única banda que falava pela cidade, delineando tão precisamente a relação de amor-ódio que inspirava. Nova Iorque era para os Velvet Underground o que Paris tinha sido para Baudelaire. E em cada caso a cidade fornecia uma justificação existencial para as respetivas criações.” (8).

Se, mesmo perante este clima adverso, The Velvet Underground and Nico se transformou depois num ícone e referência, a verdade é que caberia ao segundo disco o papel de ser o mais fiel dos retratos do que então de facto o grupo e do que representava de diferente face aos acontecimentos de então. White Light/White Head nasce já sem a influência da visão de Warhol (nem da sua demanda por “canções de amor”) nem conta com a presença vocal de Nico, que entretanto fora afastada e seguia carreira a solo. O álbum é o único que resulta do trabalho dos quatro fundadores e membros da formação clássica dos Velvet Underground. E traduz, mais que tudo, ecos da intensa vida de palco que então fazia as suas rotinas.

“Tínhamos estado a trabalhar no material [para o álbum] desde o verão passado, mas penso que as canções eram hypes. Sempre tocámos música com alto volume para obter uma sonoridade sinfónica, mas a intensidade era suposta trazer claridade, e isso não foi bem assim no nosso segundo álbum. Foi a nossa incapacidade de compreender o valor de uma opinião precisa de especialista que lentificou o nosso progresso ao longo dos anos. Quando penso na quantidade de produtores maravilhosos que podiam ter estado disponíveis para nós, incomoda-me que os não tenhamos usado”, confessaria em 1999 John Cale na sua autobiografia What's Welsh For Zen. O músico recorda também nessas suas memórias que houve muito de improvisação em White Light/White Heat. “Queríamos gravar o disco ao vivo em estúdio porque éramos bons ao vivo naquela altura. Tocámos e tocámos e tocámos e para manter aquela animalidade insistimos em tocar com o mesmo volume com que o fazíamos em palco. Trabalhávamos num estúdio bem pequeno, sem isolamento, por isso havia todo aquele ruído a estatelar-se sobre mais ruído ainda.”


White Light/White Heat foi o disco “mais abrasivo e poderoso dos Velvet Underground”, defende ainda John Cale. O álbum foi editado em janeiro de 1968 sob uma resposta “tépida” e nas duas semanas em que esteve na tabela de vendas da Billboard não foi além do número 199. O tempo fez John Cale ver o disco como “um espelho preciso daquela cultura, mas naquela altura nem foi tocado na rádio e as críticas que teve foram más”. (9)

De facto mais abrasivo que o som do álbum anterior, expressava também rotinas entretanto criadas em palco, nomeadamente os míticos episódios de jamming sobre os quais a voz de Lou Reed ia contando histórias. Em The Gift chegam mesmo a colocar a voz num dos canais do estéreo e os acontecimentos musicais, dominados pela eletricidade, no outro, podendo o ouvinte escolher o que pretendia acompanhar, se a voz, as guitarras (ou o conjunto). Neste disco cabe ao mais “convencional” Here She Comes Now a mais evidente aproximação ao formato da canção clássica (mais vezes visitada no álbum de estreia). A contribuição de Andy Warhol limitou-se ao conceito da capa, que usa uma fotografia do braço tatuado de Billy Lynch.

“Era um bom disco. Estávamos um pouco desapontados uma vez mais com a MGM. Nunca estava nas lojas (…) Em certas cidades, como Boston, fez bem, e toda a gente gostou dele. Muitos dos que lhe conseguiam deitar as mãos gostavam dele. Mas o público dos nossos discos estava limitado ao que nos via ao vivo. Porque nunca passávamos na rádio. A MGM não fazia nada para nos promover”, descreveu a baterista Moe Tucker (10).

1 Lou Reed (1942-2013) Nasceu em Brooklyn. Estudou jornalismo, escrita criativa e cinema. Entre os seus professores contou-se o escritor Delmore Schwartz, que Reed descreveria como a maior figura que alguma vez conheceu. Começou a trabalhar na música ao serviço da editora Pickwick Records. Formou pouco depois os Velvet Underground (onde foi vocalista e guitarrista), dos quais se afastaria em 1970. Iniciou a sua carreira a solo em 1972.

2 John Cale (n. 1942) Natural do País de Gales, estudou música em Londres e integrou primeiros movimentos de música de vanguarda antes de se mudar para Nova Iorque, onde chegou em 1963. Entre outros trabalhou aí com La Monte Young, antes de integrar como baixista os Velvet Underground, dos quais se afastou em 1968. Encetou carreira a solo pouco depois tanto como autor e intérprete como enquanto produtor. Nestas funções trabalhou, entre outros, com nomes como os de Nico, Stooges, Brian Eno, Marc Almond ou os Happy Mondays.

3 Sterling Morrisson (1942-1995) Um dos fundadores dos Velvet Underground, nasceu em Nova Iorque e estudou inglês na universidade, onde conheceu Lou Reed. Depois dos Velvet Underground (onde foi guitarrista e baixista) colaborou pontualmente em algumas sessões de gravação, nomeadamente para discos de John Cale, Luna, Nico ou Moe Tucker.

4 Moe Tucker (n. 1944) A baterista de grande parte da obra em disco dos Velvet Underground nasceu em Levitton (Nova Iorque, EUA). Depois de se afastar do grupo mudou-se para Phoenix, no Arizona. Fez então carreira tanto a solo como integrando algumas bandas.

5 Nico (1938-1988) Natural de Colónia (Alemanha), esta atriz e cantora integrou os Velvet Underground numa etapa que correspondeu à criação do álbum de estreia, o único em que participa. Além de uma carreira a solo na música tem uma filmografia que integra títulos como La Dolce Vitta, de Fellini ou Chelsea Girls, de Andy Warhol.

6 in The Velvet Underground And Nico, de Joe Harvard, Continuum, 2004, pág 141

7 Transformer: The Lou Reed Story, de Victor Bockris, Simon & Shuster, 1995

8 in Up-Tight – The Velvet Undreground Story, de Victor Bockris e Gerard Malanga, Cooper Square Press, 2003, pag 76

9 in What’s Welch For Zen, de John Cale e Victor Bockris, Bloomsbury Publishing, 1999, pág 110

10 in in Up-Tight – The Velvet Undreground Story, de Victor Bockris e Gerard Malanga, Cooper Square Press, 2003, pag 91

(continua)