Duas ou três cenas para revisitarmos a grandeza de Philip Seymour Hoffman — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Fevereiro), com o título 'Memórias de lugares e música'.
Quando admiramos muito um actor ou uma actriz, quase sempre os representamos, não como pessoas reais — vulneráveis e contraditórias como qualquer pessoa real —, mas personagens que refazem, incessantemente, os momentos mais emblemáticos dos seus próprios filmes. Para mim, Philip Seymour Hoffman será sempre a figura monumental e discreta que protagoniza uma cena admirável da obra-prima de Spike Lee, A Última Hora (2002): descobrimo-lo em conversa com Barry Pepper, junto a uma janela da qual se vê o chamado “ground zero” dos atentados de 11 de Setembro, ocorridos cerca de um ano antes. Hoffman era um dos brilhantíssimos actores do filme (protagonizado por Edward Norton): através de uma sereníssima contenção, sabia transmitir-nos essa sensação terrível de ainda pertencermos a um lugar em que, afinal, já não nos reconhecemos.
Hoffman possuía a capacidade rara de não apagar em cada personagem a questão fulcral do enraizamento: desde o drama puro (aí estão os filmes que fez com Paul Thomas Anderson para o comprovar) até à mais paradoxal ligeireza cómica (recordemo-lo na figura de um argumentista de cinema, em State and Main, de David Mamet), a sua arte de estar e dizer faz dele um símbolo fulcral na história da produção americana das duas últimas décadas.
E recordo-o também no papel do crítico de música de Quase Famosos, de Cameron Crowe. Em diálogo com o jovem candidato a jornalista, interpretado por Patrick Fugit, Hoffman traçava um retrato amargo do meio em que trabalhava, desiludido com hipocrisias e traições, embora ressalvando uma coisa boa. Qual? “As editoras mandam-te os discos” [video]. Seria preciso um espantoso actor para nos fazer sentir que não se tratava de uma atitude de coleccionador, mas sim do mais puro amor pela música.