segunda-feira, janeiro 20, 2014

A saga de Cristiano Ronaldo

A atribuição da Bola de Ouro a Cristiano Ronaldo desencadeou mais uma vaga de deprimente "patriotismo" televisivo. Não se trata de discutir os méritos profissionais do jogador, mas sim todo um aparato ideológico nacionalista & mediático — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (17 Janeiro).

Dir-se-ia que as televisões querem levar-nos a detestar o nome de Cristiano Ronaldo. Pelo menos, no dia em que o jogador português recebeu a Bola de Ouro, bem se esforçaram por saturar, até à náusea, o espaço informativo de Cristiano Ronaldo, Cristiano Ronaldo, Cristiano Ronaldo...
Claro que não é fácil dialogar sobre isto num país viciado em quotidianas promessas de êxtase colectivo. E não é fácil porque, dado o ambiente de histeria televisiva, só se pode esperar um coro de vozes a reagir contra tal heresia: “Então estás contra Cristiano Ronaldo?” Não há maneira de responder a tal cegueira. Permito-me sublinhar o óbvio: nada disto tem a ver com os méritos profissionais de Cristiano Ronaldo. O que está em causa é o facto de, mais uma vez, se transformar um troféu do futebol em pretexto para toda uma saga “redentora” sobre a pátria, o futuro do país e, quem sabe, a possibilidade de vida noutras galáxias...
FOTO: es.wikipedia
Quando ouço profissionais sérios entregarem-se a elaboradas considerações sobre a “auto-estima” que Cristiano Ronaldo nos traz... chego a pensar que estão a gozar com a sua própria inteligência. Desde quando um jogador de futebol, por mais excepcional, passou a ser alavanca da identidade de todo um país, todo um povo, toda uma história? Aliás, este anedotário “sociológico” produziu recentemente outra tese exemplar: Eusébio teria sido a figura que pôs o nome de Portugal no mapa internacional porque, nos anos 60, basicamente ninguém queria saber de nós... Desculpem lá, mas estão a tentar rasurar a riqueza, complexidade e contradições da nossa história cultural ou apenas, mais uma vez, a brincar aos doutores?
Isto para já não falarmos dessa pergunta ridícula que circulou por estes dias: como seria Eusébio se jogasse futebol no tempo de Cristiano Ronaldo? Vou inspirar-me neste estilo e, quando escrever sobre a história do cinema português, vou perguntar como seria O Pai Tirano se António Lopes Ribeiro tivesse podido filmar nos estúdios de George Lucas... Já percebi que, em país de tão burlescas “análises”, corro o risco de ser tomado a sério.