sexta-feira, janeiro 10, 2014

A propósito dos "milhões" dos filmes

Problema industrial e questão jornalística: para compreender algo da economia do cinema, é preciso passar para além da evidência dos "milhões" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Janeiro), com o título 'Muitos sucessos e poucos espectadores...'.

Sou dos que pensam que um filme como Homem de Ferro 3 (estreado entre nós em Abril do ano passado) traduz uma profunda degradação dos padrões cinéfilos. Por três razões fundamentais: porque funciona como uma colagem de “spots”, dispensando qualquer trabalho consistente sobre a narrativa; porque banaliza a contribuição dos actores (quem se lembra que, por trás da lata do super-herói, está Robert Downey Jr., um dos grandes actores contemporâneos?); enfim, porque promove uma concepção tecnocrática do cinema como acumulação de “efeitos especiais”, recalcando as especificidades artísticas e a sua dimensão humana.
Dito isto, não vou negar o que muitas notícias têm dado a saber: com 1215 mil milhões de dólares (perto de 900 milhões de euros) de receitas planetárias, Homem de Ferro 3 é o maior sucesso de bilheteira de 2013. Nem vou ceder a essa demagogia medíocre que utiliza o sucesso financeiro como forma de difamar o trabalho da “crítica”: conheço bem o modo como tais processos de chantagem disparam contra todas as formas de pensamento; tenho mesmo idade suficiente para me lembrar de ser atacado como perigoso aliado do imperialismo americano por defender apaixonadamente um gigantesco sucesso como Tubarão (1975), de Steven Spielberg...
A minha pergunta é esta: na sua euforia pueril, o que é que as notícias recalcam? Desde logo, mesmo no plano estritamente financeiro, o relativismo dos números. Assim, basta consultar a lista das receitas ajustadas em função dos índices de inflação ao longo das décadas, para ficar a saber que, em tal lista, Homem de Ferro 3 surge em... 102º lugar. A sua performance corresponde a cerca de metade do valor da de Ben-Hur (1959), colocado no 13º lugar da mesma tabela; quanto ao nº1 de todos os tempos, E Tudo o Vento Levou (1939), as suas receitas são 4,2 vezes maiores que as de Homem de Ferro 3.
O que se ignora é o facto de continuarmos a assistir a uma redução generalizada dos espectadores nas salas de cinema. Aliás, valeria a pena contrariar a permanente “americanização” das notícias sobre os dinheiros do cinema, referindo, por exemplo, o facto de, em 2013, o consumo nas salas britânicas e francesas ter decaído, respectivamente, um por cento e 5,3 por cento (sem esquecer que estamos a falar dos quarto e quinto mercados do mundo, logo após EUA, China e Japão). Na prática, estamos perante um desafio global que adquire contornos particulares nos mercados de reduzida dimensão (em Portugal, os números, ainda não definitivos, dão conta de uma inevitável baixa pelo terceiro ano consecutivo).
No novelo de dúvidas que tudo isto envolve, há uma certeza que se renova: a de que, de um modo geral, a cultura televisiva dominante (telenovelas e “reality TV”) é inimiga do cinema. E uma hipótese que, mais do que nunca, importa valorizar: a diversificação inventiva da oferta nas salas escuras.