sexta-feira, janeiro 10, 2014

"12 Anos Escravo": factos e imaginações

Depois de Fome (2008) e Vergonha (2011), o inglês Steve McQueen volta a assinar um filme surpreendente, desta vez sobre a escravatura nos EUA, em meados do séc. XIX — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Janeiro), com o título 'Tudo aquilo que o vento devolveu'.

A certa altura, numa cena do início de 12 Anos Escravo, vemos Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), cidadão livre, antes de ser raptado, a entrar com a família numa loja para fazer compras. É observado por um outro homem de raça negra que o acompanha com o olhar, num misto de confusão e espanto, acabando mesmo por entrar na loja para ver aquele negro que se comporta “como um branco”... Logo a seguir, chega um homem branco que o interpela, em tom autoritário, levando-o para o exterior.
O cinema de Steve McQueen é feito destas complexas estruturas de cruzamento de olhares. E não apenas porque, numa situação como a citada, ele coloca frente a frente dois símbolos – o homem negro livre e o homem negro escravo – das tensões internas da sociedade americana em meados do séc. XIX. Aliás, a construção dramática da cena é ainda mais elaborada, uma vez que integra também o desconforto silencioso de Solomon e a reacção do dono da loja, contemplando tudo o que acontece como uma “inevitabilidade” que lhe é exterior. O que McQueen procura é, afinal, o carácter mais visceral das histórias individuais e colectivas, quer dizer, essa textura de factos e imaginações, gestos concretos e hipóteses abstractas que, em cada momento, fazem e desfazem os significados e significações das relações humanas.
Daí a dimensão psicanalítica do seu cinema, como se se tratasse de um resgate dramático: dar-nos a ver aquilo que as ficções clássicas mantinham recalcado. Nesta perspectiva, poderemos talvez dizer que 12 Anos Escravo se constrói a partir do avesso carnal de um clássico como E Tudo o Vento Levou (1939): a miragem idílica do Sul dos EUA surge, agora, como paisagem de uma política de crueldade e medo. Neste nosso séc. XXI, a utopia desfaz-se perante o génio do realismo.