RENÉ MAGRITTE, O Telescópio (1963) |
Como discutir a cultura no espaço televisivo? Talvez começando por reconhecer que não há nada de mais cultural que tudo aquilo que acontece em televisão — esta crónica foi publicada no Diário de Notícias (27 Dezembro).
Em 2013, confirmando tendências de anos anteriores, a maior parte dos discursos televisivos continuou a definir a cultura como uma coutada imaginária em que só acontecem coisas abstractas e mais ou menos redentoras. Conhecemos bem o recalcamento que isso implica: mascara-se o facto de o espaço televisivo ser o lugar central da vida cultural, isto é, do modo como nos relacionamos e dos valores que tais relações envolvem.
Só mesmo por distracção ou cinismo se pode pensar que a nossa identidade cultural é exterior ao facto de vivermos num país diariamente massacrado com os horrores do Big Brother ou ocupado por horas e horas de emissões empenhadas em anular o prazer de ver futebol, transformando os jogos numa tragédia de “justiça & injustiça”, “inocentes & culpados”...
Tudo isso é eminentemente cultural, pela simples razão de que a cultura não existe como um adereço de “concertos”, “bailados” ou “palestras” que se mandam para o ar de modo caótico, de preferência depois das duas da madrugada. A cultura é o caldeirão de valores – humanos, estéticos e políticos – com que se organiza e desorganiza a nossa vida comum. Não tem nada a ver com essa hipocrisia triunfante que secundariza tudo o que escape ao populismo mediático em que vivemos, acrescentando-lhe, de forma gratuita, o adjectivo “cultural”.
A cultura não é, por isso, um lugar de pacificação. Bem pelo contrário, a paisagem cultural é o cenário de uma guerra interminável, incontornável na sua exigência ética e também, convém acrescentar, feita com o brilho das ideias, não com a violência de balas e canhões. Por isso, quando se fazem, promovem e vendem as mais tristes misérias para inundar os nossos horários nobres, importa lembrar que tal trabalho envolve pesadas responsabilidades culturais, já que tudo isso tem efeitos profundos na maneira como falamos com os outros, olhamos uns para os outros e pensamos a nossa solidão. Dito de outro modo: é nesse tipo de programação que estão os mais poderosos agentes culturais do nosso país.