domingo, novembro 24, 2013

E assim Shostakovich venceu Estaline


Um dos mais evidentes exemplos da surdez totalitária promovida pelo regime soviético sob a liderança de Estaline pode ser representado pela história da Sinfonia Nº 4 de Dmitri Shostakovich. Hoje reconhecida como uma das suas mais importantes obras orquestrais, foi na verdade silenciada por alturas do seu nascimento natural, acabando por ser apenas estreada em 1961, anos depois da morte do ditador e já sob um diferente clima para as artes na URSS. Consideravelmente distinta das obras de mais evidente cariz celebratório que havia projetado nas duas sinfonias anteriores (ambas concluídas em finais dos anos 20), Shostakovich trabalhava numa nova sinfonia quando o Pravda (o órgão oficial do Partido) apresentava um editorial não assinado (ou seja, de peso “oficial”) que se crê ter surgido após a reação de insatisfação de Estaline ao assistir uma representação da ópera Lady Macbeth de Mtensk, da qual se diz que saiu após o primeiro ato. O artigo falava de “caos” em vez de música. E nas duas semanas outros dois textos apontariam exemplos de “formalismo” na música do compositor. Ou seja, o horror claramente indesejado num estado que afunila a arte como nada senão um instrumento de uma ideia.

Shostakovich continuou a compor. Mas já perante uma data para a estreia, em São Petesburgo (então Leninegrado) em finais de 1936, acabaria por cancelar a apresentação da obra, publicando um artigo onde prestava justificações que, mais tarde, seriam refutadas. Tinha sido vetada, não necessariamente voluntariamente retirada para uma eventual reflexão e possível revisão. Pressionando a retirar da programação a estreia da sinfonia, o diretor da orquestra terá pressionado o compositor nesse sentido, soube-se nos anos 60 pelo relato do então secretário de Shostakovich.

Durante a guerra perdeu-se o manuscrito inicial. Mas de fragmentos de esboços Shostakovich refez a partitura em 1946, chegando mesmo a apresentar então particularmente uma versão para dois pianos. Só depois da morte de Estaline (em 1953) considerou dar vida a esta obra silenciada desde 1936. E em 1961 viu finalmente a luz do dia em Moscovo, conhecendo depois primeira audição internacional na edição de 1962 do Festival de Edimburgo. Reveleva-se uma obra de um fulgor impressionante nos dois mais longos andamentos exteriores (o primeiro e o terceiro), pelo meio surgindo um outro, mais curto, claramente influenciado pela música de Mahler, que Shostakovich então estudava atentamente. A obra revela evidentes sinais de busca de uma linguagem muito pessoal e representa a afirmação de uma visão na qual reconhecemos claramente as marcas da personalidade do compositor. E assim a voz do compositor sobreviveu ao silêncio desejado pelo ditador.

A presente gravação, assinada por Vasily Petrenko com a Royal Liverpool Philharmonic Orchestra, é mais uma contribuição (em concreto a penúltima) para uma integral sinfónica do compositor que a Naxos tem vindo a editar nos últimos anos e que é já reconhecida como uma abordagem de referencia à obra orquestral de Shostakovich.