domingo, novembro 24, 2013

Conversas de arquivo:
Martin L. Gore, 2003

Esta entrevista foi realizada em Londres por ocasião do lançemento de Counterfeit 2, disco a solo de Martin L. Gore, dos Depeche Mode. E foi originalmente publicada na edição de 26 de abril de 2003 do DN com o título 'Pode Alguém Ser Quem Não É'.

Porque opta pelas versões sempre que grava a solo?
Gosto de fazer discos de versões porque permitem um olhar sobre as nossas próprias influências. Ainda por cima sinto que não seria justo usar as minhas canções fora dos Depeche Mode, já que isso poderia criar um conflito de interesses e, ainda por cima, não sou um autor prolífico...

Como busca a definição de uma personalidade própria nas versões que grava?
Creio, no subconsciente, que as canções que escolho cruzam-se tematicamente com as que escrevo. Numa versão gosto, depois, de tomar um rumo diferente, evitando fazer uma réplica do original, e assim aplico a minha identidade.

Muitas destas canções vêm dos anos 70. Eram discos que comprou quando era adolescente?
Há canções até mesmo dos anos 30... Mas é verdade que muitas vêm dos anos 70, que para mim foram um dos momentos mais excitantes na música, sobretudo porque estava naquela idade em que se é mais impressionável.

Comprava muitos discos?
Sim, sobretudo singles. Até porque não tinha dinheiro para álbuns!

Que músicos mais admirava então?
Os meus dois ídolos eram David Bowie e Gary Glitter... Saía de casa bem cedo no dia em que saía cada novo disco de Bowie. E pertenci a uns clubes de música onde se podia encontrar discos do Gary Glitter que eram bem difíceis de encontrar. Gostava do glam rock.

Como evoluiu a sua relação com esses músicos ao longo da sua vida?
Sempre acompanhei Bowie e ainda tenho bastante interesse pelo que faz. De resto, o último álbum creio que é fantástico... O Gary Glitter é que não tem sido alvo de interesses muito positivos... De resto, ao pensar em fazer uma versão de uma canção dele para este álbum senti-me mal, já que não queria parecer um aparente apoiante, sobretudo dadas as alegações que correm...

Essas referências apontam claramente para o rock, as guitarras. Mas acabou numa banda pop electrónica. Como é que os sintetizadores entraram em cena?
Comprei o primeiro sintetizador quando tinha 18 anos, e nessa altura sentia-me muito influenciado pelos Kraftwerk, que traziam toda uma nova maneira de fazer e apresentar música. E havia uma certa estagnação no rock... Mas gosto ainda muito da escrita mais convencional e de canções convencionais. Mas depois gosto de apresentar essas mesmas canções num formato mais moderno. Este disco é electrónico, e não creio que tenha havido até hoje muitos discos de versões neste registo.

Nos primeiros dias de 80, quando Vince Clarke abandonou o grupo, teve de assumir o papel de compositor dos Depeche Mode. Foi um desafio?
Não pensei muito nisso na altura, até porque era muito novo e sentia-me entusiasmado. Mas não era uma absoluta novidade para mim, já que desde que tive a minha primeira guitarra, aos 13 anos, escrevia canções. O primeiro álbum em que assumo a composição foi até estranho, porque algumas das canções vinham dos meus 16 anos e outras foram criadas ali, em estúdio. Talvez por isso não tenha um sentido de coesão como álbum. E levou algum tempo até sentir que tinha encontrado o meu espaço como autor...

Quando é que sentiu que isso aconteceu?
Creio que há bons momentos no Construction Time Again e no Some Great Reward... Mas só a partir do Black Celebration me senti completamente satisfeito com o nível de escrita atingido.

A fé, o misticismo, têm sido temáticas recorrentes na sua escrita. Como reage perante o uso da religião como arma política?
Sempre me senti fascinado pela religião, embora nunca tivesse seguido alguma em particular. E o meu cepticismo contra as religiões organizadas deve-se ao facto de sentir que podem ser usadas num mau sentido. Gosto todavia de pensar que há uma espiritualidade que passa pela minha música... Até mesmo nas versões que gravo, como neste disco acontece com o In My Time Of Dying, que é um velho gospel blues sobre a fé, sobre a morte e a presença de Jesus como ajuda. Noutro tema, o Lost In The Stars fala-se de se ser abandonado por Deus...

Sente que é ainda possível detectar a personalidade dos autores dessas canções nas suas versões transformadas?
Por vezes tento trazer o espírito do autor para as versões. Muito do álbum é tranquilo, e em parte das canções quase sussurro. Mas quando chegou à versão do Nick Cave senti que não seria correcto manter esse clima. E aí tive mesmo de gritar (risos).

Porque é que os Depeche Mode não costumam gravar versões?
Só me lembro de termos gravado uma, no lado B do Behind The Wheel, onde fazia sentido termos uma canção de estrada [Route 66]. Mas não sei se faria sentido gravarmos um disco de versões. Temos gostos muito diferentes, mesmo com pontos de referências comuns.

Já houve, contudo, vários tributos aos Depeche Mode e mesmo algumas versões em discos individuais de certos artistas. Há canções suas que gostasse ainda de ver reinterpretadas? E por quem?
Senti-me muito honrado pelo facto de Johnny Cash ter feito uma versão de uma canção minha [Personal Jesus]. Ele é a última lenda viva da sua era [o cantor morreria mais tarde, ainda nesse ano]. E um grande autor... Creio que a Tori Amos fez também um belíssimo disco de versões, entre as quais a de um tema nosso [Enjoy The Silence]. Num disco-tributo, o For The Masses, havia versões de bandas como os Smashing Pumpkins ou os The Cure... É bom constatar que influenciámos gente tão diferente entre si.

Surpreende-se com a forma como algumas das suas canções são, por vezes, reinterpretadas?
Sim, sobretudo quando reconheço que vêm de gente de campos tão diferentes. Nunca esperaria que o Johnny Cash escutasse as nossas canções, nem mesmo as dos Nine Inch Nails!...

Neste seu novo disco há canções de nomes mais recentes. Continua atento a tudo?
Compro muitos discos, sobretudo nas áreas da música electrónica... Faço sobretudo compras na Internet.

Consegue afastar-se do universo dos Depeche Mode e viver uma vida pessoal?
Por vezes sinto até que tenho duas personalidades distintas. Por vezes estou a funcionar no "modo rock star", quando chega a altura de fazer promoção ou dar concertos, e depois chego a casa, em Santa Barbara, uma zona onde ninguém sabe quem eu sou, e tenho então uma vida familiar normalíssima. É uma existência estranha...

Tem hobbies exteriores à música?
Gosto muito de jogar futebol. Jogo três vezes por semana quando estou em casa.

Numa pequena equipa local?
Sim... Comecei a fazê-lo há uns dois ou três anos. Ao princípio um pouco desapontado por reparar que tinha esperado tanto tempo para começar a jogar... Mas depois entendi porquê. Até então vivera em Inglaterra, onde não pára de chover, faz frio, e ninguém pode jogar três vezes por semana! Jogar faz-me bem... É um bom exercício, é positivo.

Podemos esperar um hino futebolístico da sua lavra?
(risos). Não sei... Talvez um dia adoptem uma canção minha nas bancadas. Seria tão bom como ter uma versão pelo Johnny Cash.


Imagens das capas dos dois discos a solo já editados por Martin L. Gore. O EP Counterfeit data de 1989. O álbum Countefreit 2 foi lançado em 2003.