Michael Winterbottom assina The Look of Love, um grande filme sobre Paul Raymond e o seu império financeiro alicerçado na edição de revistas pornográficas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Setembro), com o título 'O realismo de Michael Winterbottom'.
No imaginário corrente de uma geração (a minha...) nem sempre muito atenta às contradições da sua própria experiência, a década de 1960 inscreveu-se como uma época de muitas formas de libertação e redenção. E foi-o, sem dúvida, sobretudo se a soubermos olhar e pensar para além do simplismo simbólico das imagens para consumo fácil de “hippies” de olhar mais ou menos vago, afectado pela poluição de nuvens baixas. Acontece que nada disso pode ser cristalizado no tempo, como se a vida fosse um mero processo jurídico de acumulação de novas regras.
No domínio específico da sexualidade, a “transparência” dos lendários sixties não pode ser separada da vaga de banalização afectiva que se seguiu, sendo a proliferação de imagens e narrativas pornográficas o sinal mais óbvio de um processo necessariamente complexo a que, por mim, gostaria de não contrapor uma qualquer lógica de “purificação” moral. O inglês Paul Raymond (1925-2008) pode ser um sintomático exemplo das convulsões de tal herança, já que construiu uma fortuna (das maiores do Reino Unido na década de 90) através da conjugação de uma rede de imóveis, clubes nocturnos e revistas pornográficas como Men Only ou Mayfair. É nessa condição que Michael Winterbottom [foto] o encena num filme magnífico, O Império do Amor, que corre o risco de ser anulado pela lógica de um mercado que, infelizmente, nem sempre tem sabido promover os filmes mais “pequenos” (sendo o caso de A Gaiola Dourada a apoteótica e muito positiva excepção).
O título português não é muito feliz. De facto, o original, The Look of Love, evocando a canção clássica de Dusty Springfield (aliás ouvida na banda sonora), envolve um distanciamento irónico que a noção de um “império do amor” não contém, quanto mais não seja porque a marginalização cruel das relações amorosas surge como uma das principais linhas temáticas do magnífico trabalho de Winterbottom. Reassumindo as componentes realistas da tradição em que se formou, o que ele filma é a lenta decomposição humana de um universo em que o triunfo da mercantilização promove o metódico esvaziamento de qualquer desejo (e é pena que um dos filmes anteriores de Winterbottom, o brilhante “thriller” O Assassino em Mim, baseado no romance de Jim Thompson, tenha chegado aos canais do cabo sem ter passado pelas salas).
Em última instância, Raymond possui as componentes de uma genuína personagem trágica: Steve Coogan, colaborador regular de Winterbottom (vimo-lo, por exemplo, em 24 Hour Party People, lançado em 2002), compõe uma figura em que os êxtases da acumulação do capital se confundem com o gelo de uma solidão crescente e implacável. O filme consegue a proeza de colocar tudo isso em jogo sem nunca descartar nenhuma personagem nem reduzir a época a uma colecção de retratos pitorescos ou moralistas. É uma proeza cinematográfica e conceptual.