domingo, agosto 04, 2013

De noite, mas sem fronteiras...


Há editoras discográficas cuja personalidade traduz diretamente a daquele (ou daquela) que a fundou e ajudou a desenvolver. Ahmet Ertegun na Atlantic Records. Ivo Watts Russell na 4AD. Alan McGee na Creation... A lista será extensa e a projeção natural da visão e dos gostos destes editores (no mais clássico sentido dos termos) ganhou expressão numa discografia que, apesar de assinada sempre pelos autores e/ou intérpretes de cada disco lançado, na verdade não deixa nunca de vincar essa identidade maior que é assim transversal a todo o catálogo. Com já algumas décadas de trabalho, não deve haver hoje (no ativo) um editor tão presente, tão marcante e interventivo como o é o alemão Manfred Eicher, a alma da magnífica ECM Records, cada editorial que tem sabido manter firme os princípios que a definiram, alargando constantemente o seu catálogo a expressões novas de ideias que se enquadrem numa maneira de sentir a música. Que, na verdade, é muito a materialização do gosto e da sensibilidade de Eicher.

Tal como Ivo Watts Russel criou nos anos 80 os This Mortal Coil juntando alguns músicos ligados ao catálogo da “sua” 4AD, também Manfred Eicher foi o catalisador de uma ideia que, em dez anos, se afirmou como um nome de referência do catálogo da ECM, juntando alguns dos músicos que ali gravam. Resolveram chamar-se The Dowland Project e, depois de se estrearem há dez anos com Care Charming Sleep, e de terem assinalado um episódio de continuidade em Romaria (2008), editam agora Night Sessions, um terceiro álbum, uma vez mais partilhando o protagonismo com a voz do tenor John Potter (o mesmo que há quatro anos, com Abrose Field, fez de Being Duffay um dos títulos mais assombrosos do catálogo recente da editora).

O principio que define este terceiro álbum não se afasta muito daquele que desenhou os dois anteriores. Mas com uma diferença substancial no fator “surpresa”, uma vez que o que aqui escutamos é o resultado de ideias que começaram a surgir em sessões “after hours”, perante a sugestão de Eicher em regressarem, numa certa noite, já bem tarde, à igreja onde estavam a gravar, para ver o que surgia. No booklet que acompanha este lançamento John Potter recorda que por essa altura tinham já gravado o repertório ensaiado, pelo que de novo e diferente tinha apenas consigo alguns poemas medievais... Partiram das palavras e, fruto da reunião de músicos de várias proveniências (no mapa do mundo e dos tempos da música), surgiu mais um conjunto de ideias onde ecos da Idade Média se cruzam com caminhos da folk, do jazz e da música contemporânea, vozes e instrumentos num diálogo que aproveita ainda a exploração dos ambientes que o espaço onde gravaram. Com gravações que datam de 2001 e 2006, este disco junta a algumas dessas gravações noturnas algumas outras registadas durante o dia, entre as quais uma abordagem ao ‘Menino Jesus da Lapa’. No fim, os diálogos entre John Potter (voz), Stephen Stubbs (alaúde e outros instrumentos de época), John Surman (saxofone, clarinete e percussão), Maya Homburger (violino barroco), Milos Valent (violino e viola) e Barry Guy (contrabaixo) definem por aqui caminhos únicos que confirmam que aquela velha ideia de fronteira entre géneros é coisa forçada na qual a música do século XXI decididamente não acredita.