segunda-feira, julho 08, 2013

A porta de Passos Coelho...

RENÉ MAGRITTE
A Perspectiva Amorosa
1935
Mais do que nunca, importa ter consciência de que a política se faz do que se diz, do modo como se diz e das imagens envolvidas com o acto de dizer — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Julho), com o título 'Uma panorâmica e um zoom'.

Na terça-feira, 2 de Julho, pelas oito da noite, Pedro Passos Coelho ia falar ao país. A demissão de Paulo Portas surgira como um súbito abalo político, estando em jogo a (re)avaliação do cenário de crise que passou a ser o contexto “natural” da nossa existência quotidiana.
Num “zapping” pelos canais a cobrir o acontecimento em directo (todos), podia observar-se a repetição de um curioso tique de linguagem: não só os repórteres nos informavam que Passos Coelho iria aparecer “naquela porta”, como as câmaras, solícitas e cândidas, faziam uma ligeira panorâmica para a esquerda, eventualmente combinada com um zoom para a frente, fechando a imagem sobre a referida porta.
Bem sei que quase ninguém, dentro e fora das televisões, estará interessado em analisar uma panorâmica e um zoom... Em Portugal, é sabido, são muito poucos os que revelam disponibilidade para pensar as linguagens televisivas.
Acontece que, na minha minoritária visão, há várias décadas considero não ser possível pensar qualquer crise portuguesa omitindo a presença muito real da televisão no nosso quotidiano. Mais do que isso: este efeito de metódica redundância do irrelevante (“vejam claramente vista a porta por onde vai aparecer o próximo protagonista...”) enraíza-se numa ideologia mediática que decorre de um enunciado tão sincero quanto profundamente pueril. A saber: a verdade de um evento seria o resultado unilateral da simples presença de uma câmara e um repórter “no interior” desse evento.
Penso num filme do último Festival de Cannes, Le Dernier des Injustes, e no modo como o seu realizador, Claude Lanzmann, vai a locais muito precisos para, com a sua câmara, nos falar daquilo que ele sabe que as imagens não poderão mostrar (as memórias do Holocausto, entenda-se). Onde está uma prática televisiva que saiba que o real não é uma coisa que se transcreve, mas uma entidade que construímos através do que dizemos e damos a ver?... E, garanto-vos, não é uma mera questão de “objectividade”. Posso, aliás, confirmar: o primeiro-ministro apareceu mesmo através daquela porta.